quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A ERA DOS FESTIVAIS

Luiz Felipe Jardim

Primeira parte


Norman Rockwell - Puppy Love
Logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1946, Amilcare Rambaldi, floricultor da cidade de San Remo do norte da Itália que tinha sua economia baseada na produção de flores, propôs a realização de um festival de canções. Uma competição entre artistas do universo musical italiano que promoveria, além do conteúdo artístico propriamente dito, a integração nacional dentre outras coisas.  A idéia foi realizada em 1951 com o primeiro Festival de San Remo, oficialmente Festival da Canção Italiana. Ali estava, simbolicamente, inaugurada uma era de festivais de canções que aconteceriam em vários lugares do planeta e que apresentaria nas vitrines do universo musical, parte significativa do que viria a ser a trilha sonora da vida cotidiana dos anos 50 e 60 de todo o mundo.

E por falar no nosso novo velho mundo, o mundo daquele pós-guerra estava muito mudado. Mais que isso, mudava muito a cada dia. Mais que isso ainda, multiplicava e acelerava suas mudanças.  A insistente convocação de jovens para a guerra, tanto na Europa como nas Américas, afetou seriamente todos os mercados. As mulheres foram para as fábricas, e lá estavam trabalhando. Usavam calças compridas, muitas fumavam em público. Muitos laços que atavam antigos costumes sociais, e normas sociais em geral, afrouxavam-se e novas referências eram estabelecidas. Havia grande mobilidade social.

O recrutamento para a guerra – com suas óbvias consequências - de músicos e de profissionais de segmentos importantes da indústria fonográfica também havia afetado significativamente o mercado musical. As grandes orquestras sofreram um baque irrecuperável. As Big Bands européias praticamente desapareceram e nas Américas perto de 80% deixaram de existir.

Nesse novo cenário o músico solista, acompanhado de pequeno grupo musical, passou a ganhar destaque. Claro, isso era ótimo para o solista que, além de importância, ganhava mobilidade, mais possibilidades para ir até “onde o povo está”. Isso também era ótimo para as gravadoras. Os custos com as gravações foram reduzidos a tal ponto, que os lucros obtidos, em alguns casos, foram dois mil vezes maior do que seriam se utilizada a estrutura necessária para gravar as mesmas músicas com uma big band.

O crescimento do número de estações de rádio em todo o mundo ampliava em muito as possibilidades de divulgação dos produtos da indústria fonográfica, ao mesmo tempo em que levava o músico aos lugares mais imprevistos e insólitos, até onde ele jamais chegaria não fossem os discos e o rádio. O aparecimento do transistor em fins dos anos quarenta e o consequente barateamento dos preços dos rádios receptores popularizaram ainda mais as estações de rádio difusão. As pesquisas pela qualidade da reprodução das músicas gravadas resultaram no surgimento do Long Play, LP, com a tecnologia High Fidelity, e em rápido aperfeiçoamento dos toca discos em geral.

O aperfeiçoamento da eletrônica permitiria o surgimento e popularização de instrumentos musicais como a guitarra elétrica já em fins dos anos 40; do contrabaixo elétrico nos anos 50 e do órgão elétrico também nos anos 50. Amplificadores elétricos e microfones, surgidos nos anos vinte, foram significativamente aperfeiçoados, dando aos pequenos grupos musicais possibilidades de extensão, para sua sonoridade, pouco antes impensáveis.  Por exemplo: dá para pensar em um bom João Gilberto sem um bom microfone?

E por falar em Bossa Nova, num mundo que havia mudado tanto e que mudava tanto e tão rapidamente a cada dia, as experimentações, a busca de soluções para as questões que as novidades do dia-a-dia apresentavam refletiam-se também nas tendências e rumos do mundo da música. Fusões rítmicas densas e ricas estavam acontecendo por todo o planeta e resultariam no surgimento de movimentos musicais, no aparecimento de novidades rítmicas como Be bop, Cool jazz, Rock ‘n roll, Hully Gully, Bossa nova, Twist, etc. Todos fortemente marcados pela sua universalidade e pela importância do solista seja instrumentista ou cantor.

Warhol - James Dean
Na segunda metade dos anos cinqüenta acontece a explosão do rock ‘n ‘roll em todo o mundo. As novidades que o novo ritmo apresentava e, ou, sugeria, impulsionam atitudes, comportamentos, tanto em consonância como em desacordo com suas proposições. Embates acalorados ultrapassam os limites puramente musicais e estendem-se às diversas instâncias da vida coletiva. “O que me pegou foi tudo, não só a música. Foi todo o comportamento rock. Porque antes a garotada não era garotada, seguia o padrão do adulto, aquela imitação do homenzinho sem identidade. Mas quando Bill Haley chegou com Rock around the clock, foi uma loucura para mim. A gente quebrou o cinema todo, era uma coisa mais livre, era minha porta de saída, era minha vez de falar, de dizer ‘eu estou aqui’. Eu senti que ia ser uma revolução incrível. Na época eu pensava que os jovens iam conquistar o mundo”, disse Raul Seixas (Raul Seixas por ele mesmo – Martin Claret 1990).  “Trata-se, Excelência, desta famigerada inovação dos nossos tradicionais princípios de moralidade pública por uma importação infeliz de película e discos do novo ritmo norte-americano denominado rock and roll... O rock, por motivos que um psiquiatra melhor desvendaria, provoca verdadeira explosão libidinosa, contagiante ao extremo... O clima é de insegurança nessa época pré-carnavalesca e para assegurar a tranqüilidade da família paulista peço que determine à polícia providências enérgicas de molde a coibir tanta desordem e tamanha afronta aos princípios que todos nós seguimos”. Assim solicitava um juiz de menores ao governador de São Paulo em 1957. Jânio Quadros, o governador, assim respondeu: “Suspender, imediatamente, os bailes em que for tocada a música, nos festejos de carnaval. Avisar todos os empresários e responsáveis, e transmitir as mais rigorosas instruções à polícia. Nenhuma contemplação”. E assim São Paulo ficou sem rock ‘n’ roll nos salões de carnaval de 57. E não foi só SP, O Rio de Janeiro, capital do Brasil, seguiu a mesma orientação e també ficou sem rock no carnaval. Nos Inícios dos anos 60, o Papa João XXlll irá condenar publicamente o Twist um subgênero do rock and roll.

Warhol - Volkswagen Tp
Mas, o mundo estava bem mais ágil e colorido, e voava bem mais alto. É que se vestia e se movimentava de maneiras bem diferentes. Além das calças compridas femininas, blusões de couro, camisas coloridas, brim coringa, calças rancheiras coloriam os espaços onde as pessoas desfilavam seu dia-a-dia. Nas ruas bem menos congestionadas, conviviam caríssimos Cadillacs com os muito mais baratos Volkswagens, além das motocicletas e lambretas. Nos céus, os aviões a jato faziam a festa. O Boeing 707 já transportava seus passageiros de lá para cá e vice versa, mas Yuri Gagarin iria bem mais longe e foi o primeiro homem a ir ao espaço. A bordo da nave Vostok I, fazia seu vôo orbital de 48 minutos, em 1961, quando anunciou: “a Terra é Azul”. O azul da Terra e do céu atraiu às mulheres, e Valentina Tereshkova foi à órbita em 1963, de quebra deu 46 voltas ao redor da Terra.  Por fim, Armstrong chegaria à Lua em 69 naquilo a que se viria a chamar de ‘um grande salto para a humanidade’.

Pisando em terra firme, a Televisão apresentava sua boa imagem ao mundo.  Baby face, sedutora irresistível, bem recebida e desejada, em dez anos estava disseminada nas principais cidades países de todos os continentes. Não só refletirá imagens, mas as produzirá junto com as imagens que fará surgir nas paisagens da vida social.

Esse cenário de novidades apresentava excelentes oportunidades para a economia européia devastada pela guerra recente. A inversão de capitais na área cultural foi de fundamental importância para a recuperação econômica da Europa, assim como para o nascimento de novas realidades culturais que resultariam, por exemplo, no aparecimento dos grupos musicais como os que promoverão a “Invasão Britânica”, a invasão do rock britânico aos EUA, berço original do rock ‘n’ roll.

A força de expansão desses movimentos atingirá fortemente lugares longínquos como as cidades da Amazônia, onde, em Rio Branco, um dos filmes mais assistidos e pretendidos pela população em meados e fins dos anos 60 era ‘a fita’ Dio come ti amo, com a cantora Gigliola Cinquetti que apresentava, entre outras, a música vencedora do Festival de San Remo de 1966 e que dá título ao filme, e a vencedora de San Remo e do Eurovision de 1964, No ho l’e tà. Rio Branco não tinha TV, por isso bebia no cinema e nas revistas as imagens referentes a parcela dos sons que ouvia no seu dia-a-dia. Via na tela, e impressa em cores, as imagens representativas dos sons que ouvia nos rádios e vitrolas, todos os dias. Como as imagens não estavam tão facilmente disponíveis, fazia filas imensas para, no cinema, assistir a Gigliolla, Gianni Morandi, Roberto Carlos, todos vencedores em San Remo e participantes de outros festivais internacionais e nacionais.

Esses são aspectos do quadro onde aconteciam os primeiros festivais. O primeiro deles, o de San Remo como já disse, aconteceu em 1951, sendo transmitido pelo rádio. E a partir daí em todos os anos. Em todos os primeiros anos o Festival teve significativo crescimento e passou a ser transmitido também pela TV em 1955, ano da inauguração da RAI.  A importância da TV para o festival supera a do rádio. A imagem televisiva passa a focar e a definir a imagem da nova era.

No ano de 1956, acontece o primeiro Festival Eurovisão da Canção. Transmitido pela TV e por rádio para vários países da Europa, teve a participação de sete países, seis deles envolvidos diretamente na segunda guerra mundial. Até hoje, quando ainda acontece anualmente, já participaram do Festival mais de quarenta países e a estrutura para cobertura de TV e rádio atinge uma área onde habitam mais de um bilhão de pessoas.

Mas ainda estamos em 1956, e a população de toda a Terra ainda beirava os três bilhões de habitantes. A grandiosa maioria crianças e jovens. Crianças e jovens inseridos num caldeirão de consumo crescente onde a economia se nutre de novidades. Jovens + novidades = lucros. Muitos lucros. Lucros até demais. A sociedade de consumo se afirmava e trazia com ela a cultura Pop que se afirmaria no cenário popular da cultura mundial por muito mais tempo do que os meros 15 segundos de fama dos seus atores.

Warhol - Marilyn
Pela primeira vez na história da humanidade recente, o jovem assumiria um papel tão importante na produção e na composição de tantas paisagens sociais positivas. Seja no teatro, seja na música, seja na pesquisa industrial, seja com as novas posturas acadêmicas e científicas que resultaram, por exemplo, nas soluções de gravíssimos problemas de poluição ambiental na cidade de Londres no início dos anos 60, os jovens ganhavam cada vez mais importância como segmento etário próprio, particular, com características e vontades próprias. O crescimento dessa importância dava à juventude a possibilidade de ampliar a consciência de si própria; de desenvolver e fixar suas linguagens particulares, seu repertório comportamental; de universalizar suas reivindicações.  Dentre elas, e que efetivamente foi conquistada, estava o direito de ser jovem por mais tempo. De poder viver por mais tempo e com menos pressão essa fase especial e especialmente criativa da moderna vida humana. Em 1960, 70% das mulheres entre 20 e 24 anos eram casadas. Em 2000, somente 23% dessa mesma faixa havia casado. Como dizia Raul Seixas logo ali acima “antes a garotada não era garotada, seguia o padrão do adulto, aquela imitação do homenzinho sem identidade”.

O Garoto e o Fantoche 
Douanier Rousseau
É claro que as grandes corporações econômicas lucravam muito com tudo isso, e ainda usavam os jovens, via recrutamento militar obrigatório, como produtos indispensáveis, matéria prima viva e insubstituível para as atrocidades e matanças das guerras, como as da Coréia e Vietnã, que ainda aconteciam e aconteceriam naquela atmosfera de permanente guerra fria que pairava sobre o mundo.

Mas a juventude havia chegado com nova fisionomia ao novo mundo. Parcela considerável desses jovens não mais aceitaria passivamente a autoridade de uma geração educada por rígidos conceitos de disciplina, de rigorosos princípios de autoridade, de hierarquia, ordem e progresso que os levara ao fascismo, ao nazismo, à guerra e logo os levaria às ditaduras militares. Afirmando seu irremediável comprometimento com o futuro, os jovens indagavam e respondiam a perguntas sobre coisas como as que mostram esse excerto da letra de uma canção de 1960:


Dali - Meditative Rose
Flores...  A ‘Era dos Festivais’, nasceu numa cidade que as cultivava. Suas cores reais e simbólicas tingirão as cores interiores das veias da humanidade. O rubro, mais vivo que aí fluirá, atingirá as revoluções que aconteciam, dando a elas a tonalidade e o volume do som de uma trilha sonora fantástica jamais vista ou ouvida em todos os tempos. Na verdade, um verdadeiro arco-íris sonoro que agora pairava sobre os horizontes da humanidade.

E para não dizer que não falei das flores...  bem, isso é assunto para o próximo capítulo, não percam, aguardem. Até breve, neste mesmo bat blog, nesta mesma bat web, neste mesmo bat canal...


* LUIZ FELIPE JARDIM é historiador e músico acreano.

3 comentários:

Olivia Maria Maia disse...

Então, até até breve, neste mesmo bat blog, nesta mesma bat web, neste mesmo bat canal...
Vou aguardar. Muito bom!!!!
beijos.

Luiz Felipe disse...

Olívia, você botou reparo no Manchinha estilizado pelas tintas do Andy Warhol? O Manchinha, lembra? Aquele fusca 67, verde, que você pilotava por entre as quadras de Brasília nos tempos de faculdade. É ele que está ali dando lustre ao texto... Bravo Manchinha, grande como ele só. Um fusca verde onde cabiam todos e todos cabiam sem apertos. Um fusquinha que só ficava um pouco pequeno quando o seu primo Everaldo Maia, o irmão dele Mário e seu irmão Digu se sentavam no mesmo banco da frente ao seu lado. Mas isso era necessário para compensar a forte retaguarda de uns seis ou sete passageiros, menos taludos, que se acomodavam folgadamente no banco traseiro. Todos com suas bagagens físicas e culturais. Sociologias, Psicologias, Música, Pedagogias, Jornalismos , Elefante Branco... Tudo isso embalado pelos sacolejos de garbosidade com o qual o seu fusca verde inspirava as Ls e Ws da vida e do Planalto. Grande Manchinha, grande o seu fusquinha. Merecia mesmo a homenagem do Warhol.
Felipe

Olvia Maria Maia disse...

Ôxe, botei reparo sim. E quantas lembranças rolaram..."há quanto tempo rapaz você não toca um blue com a gente...". Se catava feliz.
E no fusquinha "Manchinha" cabia também sonhos, ideias, ideais, fraternidade e muita amizade. Boas lembranças as suas (as nossas) dos nossos, de nós.
Abraço de saudade