terça-feira, 22 de agosto de 2017

aquiri

Glória Perez 


esse filete moroso
se esticando em suas beiras
vai num cansaço tamanho
como não fora por si
que corresse a vida inteira,
como se alguém o tangesse
desde a sua cabeceira

- é como risco de lápis
um arabesco pequeno
brincando de geografia

Sua textura é igual
a desse corpo que anima
é sangue ralo do chão
desses cantos ribeirinhos

É veia da terra magra
atravessando-lhe o corpo,
imprimida à carne pouca
dessa exposta ossatura
como lanho de chicote

Sua espessura – a do barro
lamacento, fluido,
enxertando a ribanceira

Um novelo quebradiço
desenrolando seu fio
num fôlego, de tão curto,
mais parecendo agonia

Um rebanho de boi manso
desmatando seu caminho,
cavalgando o dorso morno
da planície ressecada,
deitando suas águas frouxas
sobre a febre dessas matas

um riozinho de nada
vai assim mesmo, tangido
dar de beber a outras águas

Quando é de junho a setembro
a chuva engorda esse rio

Vai crescendo sem sossego
- é como fio de faca
Riscando terras mais longe
Das que lhe fazem de margem

Vai como fio de faca
afiado em pedra rente,
cortando de sua beira
a plantação espalhada

Como um espelho de terra
na própria terra espelhado,
como se fora essa gente
um dia toda juntada
num ato de rebeldia

Arrancando dessa vida
o que se tem por direito
Na sua febre tornada
também um fio de faca
reparando assimetrias


PEREZ, Glória. Sem pão nem circo. Rio de Janeiro: s/e, 1976.

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