quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A ARTE DO ROMANCE

Isaac Melo


Milan Kundera
O autor do instigante A Insustentável Leveza do Ser (1983) tem um pequeno opúsculo intitulado A Arte do Romance (1986). Nesse ensaio, o tcheco Milan Kundera desenvolve noções de grande valia para a compreensão do romance, apresentando-o como fruto da Modernidade, de nascimento europeu. Discorre ainda sobre os romancistas que o levaram a sua máxima expressão, os que o depreciaram e a discussão da possibilidade de seu fim.

René Descartes inaugura o pensamento moderno em que, ao partir do ceticismo intelectual, apontava para a possibilidade de a razão fazer progressos em direção à Verdade una e objetiva. Como caminho alternativo ao pensamento cartesiano Kundera aponta o romance, pois o romance, desde Miguel de Cervantes, teria reconhecido a impossiblidade de encontrar-se um ponto arquimediano, um ponto para além de todas as perspectivas, capaz de nos garantir o contato com alguma realidade essencial sobre o que quer que seja. Não há mais uma verdade redontora.

Kundera narra que quando Deus deixava lentamente o lugar de onde tinha dirigido o universo e sua ordem de valores, separado o bem do mal e dado um sentido a cada coisa, Dom Quixote saiu de sua casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo. Este, na ausência do Juiz Supremo, surgiu subitamente numa terrível ambiguidade; a única Verdade divina se decompôs em centenas de verdades relativas que os homens dividiram entre si. Assim, o mundo dos Tempos Modernos nasceu e, com ele, o romance, sua imagem e modelo.

Nesse sentido, o romance parece surgir do fato de que não há mais lugar ou garantia para qualquer sabedoria. Isso faz com que Kundera se volte para o herói de Cervantes, Dom Quixote, pois este, como ressalta Walter Benjamim, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria. A sabedoria do romance é a sabedoria da incerteza. Para Kundera, compreender com Cervantes o mundo de ambiguidade, ter que afrontar, ao invés de uma só verdade absoluta, um monte de verdades relativas que se contradizem (no caso, verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), possuir portanto como única certeza a sabedoria da incerteza exige uma força não menos grande.

No romance, segundo Kundera, o autor não ocuparia o lugar do Juiz Supremo. O leitor seria convidado a aceitar o difícil convívio com este concerto múltiplo de possibilidades presentes no romance, pois qualquer tentativa de se enquadrar definitivamente a identidade de uma personagem ou de procurar dizer o que realmente ali se está a passar equivaleria a sucumbir ao impulso contrário para o qual o próprio romance trabalha. O espírito do romance é o espírito de complexidade. Cada romance diz ao leitor: “as coisas são mais complicadas do que você pensa”. E antes que a filosofia viesse a se ocupar de alguns temas, o romance já os discutia bem antes, pois para Kundera o romance conhece o inconsciente antes de Freud, a luta de classes antes de Marx, e pratica a Fenomenologia (a busca da essência das situações humanas) antes dos fenomenólogos.

O romance não pode reduzir-se apenas a um divertimento literário, sua função também é possibilitar o desvelamamento de nosso ser. Destarte, Kundera afirma que o romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral. Porém, ressalta que a única moral do romance é o conhecimento. Por isso, os romances que não estendem a conquista do ser, a nada se prestam, pois não descobrem nenhuma parcela nova da existência, apenas confirmam o que já se disse; e mais: na confirmação do que se diz (do que é preciso dizer) consistem sua razão de ser, sua glória, a utilidade na sociedade que é sua. Exemplos relevantes, nesse sentido, são os livros de autoajuda; a literatura comercial, feita sob encomenda, cuja única finalidade é vender; os Paulos Coelhos da vida... uma vez que, seguindo o raciocínio de Kundera, não participariam da história do romance, pois não descobrem nada, não participam mais da sucessão de descobertas. Para o tcheco, os romancistas que são mais inteligentes que suas obras deveriam mudar de profissão. E ressalta que o romancista não é nem historiador nem profeta, mas um explorador de existência, e o romance, o lugar onde a imaginação pode explodir com um sonho.

O romance está em crise, reconhece Kundera, pois incluido neste sistema, ele não é mais obra (coisa destinada a durar, a unir o passado ao futuro) mas acontecimento da atualidade como outros acontecimentos, um gesto sem amanhã. Todavia, se o romance tem que desaparecer realmente, não é pelo fato de que esteja no fim de suas forças, mas porque se encontra em um mundo que não é mais o seu. Ora, se a razão de ser do romance é manter o “mundo da vida” sob uma iluminação perpétua e nos proteger contra o “esquecimento do ser”, a existência do romance não é hoje, mais necessária do que nunca, inquire Kundera.

Por fim, o romance, como paraíso imaginário dos indivíduos, é o território em que ninguém é dono da verdade. O homem pensa, Deus ri, diz um provérbio judaico. O homem pensa e a verdade lhe escapa, diz Kundera. Assim ele diferencia a sabedoria do romance da sabedoria da filosofia, pois o romance não nasceu do espírito teórico, mas do espírito do humor. De modo que, o romancista desfaz durante a noite a tapeçaria da verdade una e universal que os teólogos, os filósofos, os sábios teceram na véspera.

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KUNDERA, Milan. A arte do romance (ensaio). (trad. Teresa Bulhões C. da Fonseca e Vera Mourão). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
ARAÚJO, Inês Lacerda. Castro, Susana de (orgs). Richard Rorty: filósofo da cultura. Curitiba: Champagnat, 2008.

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