por Florentina Esteves - 14 de nov. 2010
Nuvens baixas tangidas pelo vento formam bizarras paisagens. No ar, uma tensão que os passarinhos traduzem em insistente chilrear. Como um casaco apertado, o calor sufoca, derrama-se em suor. As pessoas olham o céu, esperançosas: vai chover?
Assim aqui em nossos trópicos, ontem ou hoje. Só que hoje mais exasperado. A natureza não perdoa. O que lhe tiraram de mata, ela revida em descomedimento, desregramento, imprevisibilidade.
Não faz assim tanto tempo, os bairros Bosque e Floresta tinham, de fato, as características que lhe deram a denominação. Os bairros, amenos, arborizados, ofereciam sombra ao longo de suas ruas. Em cada quintal encontrávamos copadas mangueiras, o cajueiro, graviola, cupuaçu, laranja, para todo paladar e sombra. Mas Rio Branco crescia, os prédios de apartamentos disputam com o aprazível dos quintais o espaço da moradia, o asfalto compete com a rua de terra batida, o verde é empurrado para mais longe, mas distante, restando ao citadino o calor abrasador das urbes, ao sol inclemente de nosso clima. E onde as chuvas representam dádivas dos céus: abrandam o calor, varrem a poeira, regam as plantas: da horta ou do jardim, e ainda oferece à paisagem sempre monotonamente radiosa, o langor, um espaço para sonhar, para lembrar. Lembrar de quando as chuvas, anos atrás, eram esperadas como manancial de vida, ao dar água ao rio, que permitiria a navegação de maior calado. Com ela chegavam às embarcações que traziam provimento da mesa, o vestuário, remédios, e o supérfluo, tudo o que não era produzido na região e fazia o deleite de nossa gente. Sem falar nos filmes que seriam exibidos (a exausto) no cinema; os discos, livros, revistas – a cultura.
Começavam a chegar, com as chuvas, chatões, chatinhas, gaiolas, lanchas de maior calado. Anunciavam sua chegada com alegres apitos, logo avistavam a cidade. E eram recebidos festivamente, especialmente se traziam passageiros ilustres; o barranco se enchia de gente, e não faltasse a Banda da Polícia Militar, entoando vibrantes dobrados. A cidade ganhava ares de festa. Porto enfeitado, de dia o vai-e-vem do desembarque dos produtos trazidos, ou do embarque de castanha, borracha, couros e peles. À noite, iluminadas, as embarcações figuravam um presépio, a porfiar com o céu recamado de brilhantes estrelas, quem Luzia mais, quem instigava mais a imaginação dos que, em terra, sonhavam com a evasão, a aventura dos grandes centros. Belém e Manaus ganhavam a preferência da maioria. Mais próximos menos dias de viagem, oferecendo oportunidade de estudo, tratamento de saúde, ou lazer, era a grande Meca dos que por aqui viviam – e sonhavam.
Nosso intercâmbio comercial também se fazia com essas duas praças. Para lá mandávamos nossos produtos regionais. De lá recebíamos praticamente tudo. Sem estradas, São Paulo, Goiânia, Rio de Janeiro e os demais estados fora da região norte não eram acessíveis, a não ser por avião (isso muitos anos depois), com frete muito caro, que os inviabilizavam para o comércio. Desta forma, dependíamos da água do rio, e nossa economia girava em torno dos caprichos da natureza, em razão das águas que alimentavam o rio... E nosso espírito e nossa alma. As chuvas comandavam a vida.
Entre novembro e abril – quem sabe, maio – era o chegar e partir pelo rio. Depois, o resto do ano era o resto. Tempo de espera. Tempo de malhar Judas, da Festa das Flores, folguedos dos santos juninos, dos festejos do Seis de Agosto, Sete de Setembro, Quinze de Novembro, e eis que chegam novamente as águas; tempo de viver e de sonhar. Porque as chuvas chegaram..
* FLORENTINA ESTEVES é escritora acreana, autora, entre outros, de O Empate. Ocupa a cadeira 04 da Academia Acreana de Letras.
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** Crônica originalmente publicada no blog da artista plástica acreana Simome Bichara, em MANDALAS DA FLORESTA. Visite-o!
Simplesmente um belo texto...rs
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