Isaac Melo
Há certos amores que nunca passam, metamorfoseiam-se em esquecimento, mas não deixam de habitar nossa alma. A alma retém o que a memória quer se desfazer. Amei a literatura e a literatura me devolveu amor. Não terá nascido a literatura do primeiro coração a amar? Só quem ama sabe o caminho para alcançar um outro coração. Os literatos que mais nos marcam não são aqueles que nos falam à cabeça tão somente, senão aqueles que nos tocam o coração.
Hermann Hesse |
Suspirei, extasiado, quando encerrei as páginas de Sidarta uns três anos atrás. O livro me fascinara. Foi minha iniciação em Hermann Hesse (1877-1962). Certa vez um amigo havia me confidenciado sobre o autor: “tudo o que você encontrar desse cara é bom”. Nas primeiras páginas de Sidarta tive a confirmação dessa verdade. E desde então Hesse tem me acompanhado. Já percorri a Índia junto com seu jovem aprendiz Sidarta, tomei parte em seus dramas em companhia do Lobo da Estepe, avancei até o ano 2200 na aprendizagem dos Jogos das Contas de Vidro, sorvi de sua sabedoria ouvindo suas fábulas e aprendendo com seus contos...
O menino de Calw fora sempre um pássaro livre. Não se deixara aprisionar por convenções sociais, revoltara-se contra a classe burguesa de seu tempo e condenara veementemente o militarismo alemão. “Sou, sem dúvida, patriota. Mas, antes de tudo sou um ser humano. E, se não posso conciliar as duas coisas, dou sempre prioridade à minha humanidade” acentuava Hesse. Seu livro revela a beleza de homem que pensava com o coração e não atirava palavras ao vento.
Hesse não escrevia tão somente para satisfação pessoal. Visionário, seu olhar estendia-se a humanidade: “O poeta não deve amar o seu público e, sim, a humanidade, cuja melhor parte não lê seus escritos e, entretanto, deles necessita”. Não enfeitava a realidade: “Não acredito que o futuro nos traga uma humanidade “melhor”. Não creio venha ela ser nem melhor nem pior do que esta. A humanidade é sempre a mesma. O demônio irrompe no ser humano não apenas de maneira velada ou encarnado em criminosos e psicopatas. Muitas vezes e em alta escala, o diabo faz política e dizima povos inteiros”.
Abominava as guerras e por isso alertava: “Os homens que constituem verdadeira ameaça ao mundo e à paz são os que querem a guerra, que a preparam, e que, acenando-nos com a vaga promessa de uma paz próxima ou incutindo-nos o medo de sermos atacados, tentam fazer-nos cúmplices da execução de seus planos”. E conclamava os homens a uma consciência crítica: “Quanto mais indivíduos houver capazes de contemplar com serenidade e espírito crítico o teatro do mundo, tanto menor será o perigo das grandes loucuras de massas, a começar pela estupidez das guerras”.
Hesse reconhecia no amor, o princípio de toda arte: “O valor e alcance de toda arte serão determinados sobretudo pela capacidade de amar do artista”. Ele não só amou como nos ensinou como se deve amar: “Dar sentido à vida é missão do amor. Vale dizer: quanto mais somos capazes de amar e de nos dedicar a alguém, tanto mais plena de sentido se torna nossa vida”. E apontava novos caminhos a se trilhar: “Silenciar sobre determinado assunto que todos aplaudem calorosamente; sorrir sem maldade de pessoas e instituições; combater a falta de amor no mundo, dedicando mais atenção aos humildes e pequenos; tendo mais confiança no trabalho, mais paciência; renunciando a revidar com ódio a mínima zombaria ou crítica – eis outros tantos caminhos que podemos trilhar”.
Seus pais um dia o quiseram ver pastor protestante. Pastor tornara-se, porém, pastor de corações humanos, onde apascentava suas palavras. Palavras que não eram para iludir os homens; livros que servissem à liberdade: “Os livros não existem para tornar mais dependentes ainda pessoas já de si tão dependentes. Muito menos existem para dar a homens de si inaptos para viver uma mera ilusão ou sucedâneo de vida. Ao contrário. Os livros só têm valor quando nos estimulam a viver, quando servem à vida e lhe são úteis. Desperdiçada é toda hora de leitura da qual não resulte para o leitor uma centelha de energia, uma impressão de rejuvenescimento, um sopro de novidade e de viço”.
Por isso Hesse advertia: “Ler sem pensar, ler distraidamente, é como passear entre belas paisagens com os olhos vendados. Tampouco devemos ler para esquecer-nos a nós e à nossa vida cotidiana, mas, ao contrário, para reassumirmos em nossas mãos firmes e de maneira mais consciente e madura a nossa própria existência. Devemos ir aos livros não como alunos tímidos que temessem aproximar-se de mestres frios e indiferentes; não como os ociosos que passam o tempo a beber. E, sim, como alpinistas a galgar as alturas; como guerreiros que acorrem ao quartel para buscar armas. E não como quem estivesse a fugir de si mesmo, sem vontade de viver”.
O jovem alemão, livreiro um dia, tornou-se cidadão do mundo, e suas palavras, fagulhas a manter acesa a chama da vida, da esperança e da utopia. Em 1946 a Academia Sueca conferia o Nobel àquele menino que um dia rebelara-se contra a disciplina da escola e fugira para a Suiça, e que tempos depois iria sentenciar: “Felicidade é amor – nada mais. Quem sabe amar é feliz”. Destarte, não são os livros, é o amor a maior herança de Hesse a humanidade.
Isaac:
ResponderExcluirReencontrei-me com Hermann Hesse e seu Lobo da Estepe. Lembro que ainda adolescente mergulhei fundo neste livro e, com a mentalidade daquela época, fiquei encantado com o que compreendi e senti. Agora, mais de 30 anos depois, fiquei mais maravilhado ainda, pois minha identidade com o Lobo foi total. Gosto quando um escritor me descreve; com o coração amparado penso assim: "esse cara me conhece." Rainer Rilke frequentemente faz isso comigo. Pensei em escrever algo, mas o que você escreveu atendeu a minha necessidade. Peço licença para colocar sua crônica em meu blog.
Desde já grato.
abraços acreanos
Gilvan Almeida