E a mata, testemunha silenciosa,
regava-se de sangue e amargos prantos
enquanto na folhagem numerosa
as aves entoavam doces cantos,
n’um perpétuo contraste criador,
vida e morte plena de ódio e amor.
Farias Gama
O extrativismo da borracha e a Revolução Acreana (ou conflito, se preferir), ambos, nesse caso, interligados, constituem-se os dois fatos históricos que, até por volta da década de 1960, mais predominou na literatura produzida no ou sobre o Acre. Em inúmeras obras (cartas, poesias, romances, contos, crônicas) se prodigalizou o fado dos migrantes, sobretudo nordestinos, diante da selva, o grande “inferno verde”; se cantou seus feitos, como o “amansamento” do deserto pantanoso e se chorou suas perdas; se desvelou o viver dos seringais, a sina dos seringueiros e a sanha dos coronéis... Enfim, se celebrou a revolução, que então se tornou uma façanha notável, elevada a categoria de epopeia e aqueles que tomaram parte no litígio, tornaram-se heróis.
O Fim da Epopéia (1924), posteriormente intitulada A Conquista do Deserto Ocidental do alagoano Craveiro Costa; A Epopéia Acreana (1939) do jovem paulista Freitas Nobre; A Epopéia do Acre (1964) do paraense Silvio de Bastos Meira, são apenas três exemplos que, explicitamente, dão dimensão de epopeia à história acreana. Discussões à parte sobre o emprego dos termos “epopeia” e “revolução”, a literatura que se desenvolveu nesses moldes não pode ser ignorada ou desprezada, embora questionada, sim. Obras que, sobretudo, não podem ser lidas a partir de nossa atual visão de mundo, muito menos, sem levar em conta seus contextos e finalidades.
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Farias Gama |
Em 1919 surgia um trabalho literário pioneiro, envolto numa história inusitada. Um encarcerado compõe, o que acredito ser, o primeiro poema sobre a Revolução Acreana. Trata-se do folheto “Epopéia Acreana”, de autoria de Farias Gama. O folheto, escrito em quinze dias, foi a primeira obra literária ideiada, escrita e editorada no Acre. Nesse sentido, o livro de poesias “Acreanas” (RJ: Ed. A Noite, 1922) de Juvenal Antunes, só pode ser considerado a primeira publicação de literatura referente ao Acre se o tomarmos como livro propriamente dito, já que a obra de Farias Gama trata-se de um folheto, copilado em 39 laudas. Sobre Farias Gama não possível levantar informações biográficas.
O poemeto apresenta um esquema de rimas único que permeia todo o poema, em que o primeiro verso rima com o terceiro, o segundo com o quarto, e o quinto com o sexto. Todas as estrofes (cantos) são compostas por seis versos. O folheto se encontra assim dividido: Esborço – em que faz um apanhado histórico da Revolução; Introdução – narra a ocupação da Amazônia (VIII estrofes); Canto I – narra a vinda dos nordestinos para o Acre (XI estrofes); Canto II - narra o início do confronto (XII estrofes); Canto III – narra os primeiros combates, a rendição dos acreanos, e depois a retomada (XIII estrofes); Canto IV – narra as batalhas mais sangrentas (XIII estrofes); Canto V – narra o alastramento da Revolta (V estrofes); Canto VI – canta o desfecho final da Revolução e a vitória dos acreanos, em tom de denúncia (XVII estrofes); Epílogo – faz menção ao assassinato do líder Plácido de Castro (VII estrofes).
No esborço inicial o poeta diz como surgiu o poemeto: “Um dia, inimigos de minha altivez, arrojaram-me num cárcere. Foi então que resolvi mais amplamente servir-me desta faculdade, que embora mal, me acompanha desde a infância – o trovar. Rebusquei o motivo. Era a Revolta do Acre. Quis tanger a lira, mas não encontrei-a. Num cárcere um carrilhão”. A crítica ao sistema de governo então adotado talvez tenha sido a causa da prisão do poeta: “Vieram as primeiras trovas. Veio o interesse pela dor dos meus irmãos. Hoje como ontem, eu e eles oprimidos pelos que neste rincão exercem a crueldade, ontem o invasor, hoje os enviados legais”.
É preciso lembrar que só em 1920 é que o Acre terá um Governo Geral do Território. Antes vigorava o Sistema Administrativo de Prefeituras Departamentais. Nesse período (e depois) houve um forte movimento pela autonomia acreana, e boa parte dos acreanos ou daqueles que viviam no Acre acusavam o Governo Federal de abandonar o Território, não realizar investimentos, embora ficasse com todo lucro dos impostos arrecados sobre a borracha (que diga-se de passagem eram enormes) e de nomear pessoas autoritárias para admistração do Território, que mandavam e desmandavam.
Nesse sentido, o folheto de Farias Gama quer ser uma crítica a essa realidade de abandono do Terrítorio, do esquecimento dos “veteranos” da Revolução, e da perseguição do governo aos seus opositores, como expressa a última estrofe do Canto VI:
Era finda a revolta. Dispersados,
como feras bravias e perseguidas
os chefes foram, por legais soldados,
em breve eram seus feitos esquecidos
que a Pátria vencedora na contenda
a terra abandonou, só vê a renda.
Por fim, como a querer convencer o leitor da autencidade de seus versos, Farias Gama acentua: “Guiei-me pelas narrativas mais fiéis. Não rebusquei, nem ataviei, preferindo a verdade da história aos lauréis do romanceiro”. A grande intenção do poeta além de fazer o registro da epopeia acreana é fazer memória àqueles que dela fizeram parte: “Este o mérito: ter condensado as narrativas dolorosas e sinceras dos veteranos da Epopéia, esquecidos, abandonados, como o livro o será, dois minutos após o olhar indiferente do leitor”. Felizmente Farias Gama estava equivocado, já que a “Epopéia” e o “livro” ainda persistem, nove décadas depois.
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Excerto de Epopéia Acreana
Farias Gama
Canto I
I
Do Ceará, do Rio Grande e muitos
estados do Nordeste, brasileiros
acossados dos males mais fortuitos
emigravam aos milhares, forasteiros
que assim fugiam do torrão natal
sob o guante da seca, o grande mal.
II
Homem feitos em todos os rigores
da natureza ou do trabalho insano,
destemidos, audazes peleadores,
ei-los, em quatro paus transpondo o oceano,
ei-los no dorso de árdego montado
correndo a rês bravia em disparada.
III
De tais nervos, tais músculos, tais gênios,
precisava a conquista planejada,
e em romagem sinistra por decênios
fez-se o êxodo da turba escravizada
que no bojo de sórdido navios
deixava o verde mar por turvos rios.
IV
E subindo e crescendo a humana vaga
dos pigmeus tomados em gigantes
pela giganteia e misteriosa plaga,
ia alrotando os ecos dormitantes
da mata testemunha silenciosa
da batalha a travar-se, valerosa.
V
Mas nem sequer aos que a morrer seguiam,
davam conforto os rudos condutores,
quais bestas maltratadas prosseguiam
a jornada da fome e dos horrores
até a entrega ao patronal (?)rrate
por preço tal de um incapaz resgate.
VI
Eram chegados ao feudal domínio,
abatidos, sem ânimo, os escravos
e logo se iniciava o extermínio:
o índio a traição postrando os bravos,
transformando em ruínas, as sezões
aqueles que eram a graça dos sertões.
VII
De tão grande porção amiúde vinda
restava empalemado e barrigudo,
um pugilo, a lutar disposto ainda
contra o índio, a floresta, a doença, tudo,
tudo com o rude afinco congregador
como a tornar o solo inviolado.
VIII
Como se não bastassem tais tormentos
os pobres lutadores inorados
sofriam dos patrões, aviltamentos,
quais não sofrem maiores desgraçados,
sem ter em quem buscar mercê, justiça,
pois de estrangeiros se julgava a liça.
IX
E a mata, testemunha silenciosa,
regava-se de sangue e amargos prantos
enquanto na folhagem numerosa
as aves entoavam doces cantos,
n’um perpétuo contraste criador,
vida e morte plena de ódio e amor.
X
Em refregas inúteis se esgotavam,
há muito os elementos combatentes.
Simulacros de ação que redundavam
em morte e desbarato aos mais valentes,
quando empós a refrega sem proveito,
vinha a justiça com feroz aspeito.
XI
Muitos bravos haviam já tombado
e o desalento os arraiais minava,
pois no Pátrio Torrão ignorado
com bruto alarde o estranho dominava
impondo duras leis, provações novas,
o cárcere, o fuzil, o espicha e as covas.
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GAMA, Farias. Epopéia Acreana: poemeto. Acre: 1919.
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Nota: os excertos do poema sofreram pequenas atualizações conforme a gramática regente atual (por exemplo, creador = criador, misterioza = misteriosa... que em nada tira o valor poético da obra).