“Brincadeira na fogueira
André & Mazinho
Tem tanta fogueira
Tem tanto balão
Tem tanta brincadeira
Todo mundo no terreiro
Faz adivinhação
Meu São João eu não
Eu não tenho alegria
Só porque não vem
Só porque não vem
Quem tanto eu queria (bis)
Danei a faca
No tronco da bananeira
Não gostei da brincadeira
Santo Antonio me enganou
Sai correndo
Lá pra beira da fogueira
Ver meu rosto na bacia
A água se derramou”.
O Recanto da Serrinha do velho Antonio João de Campinas e de Dona Constância virou reduto das grandes comemorações juninas nas redondezas do Riozinho das Capivaras. Por ter nascido no dia de Santo Antonio, ainda no início do século passado, o chefão e bom nordestino começava pelo novenário, já no primeiro dia, só dando por encerrada a festança no morrer do mês. Ficavam as saudades...
Os filhos, Adonay e João Alberto de Campinas, pessoas de forte influência na cidade, traziam amigos e mais um magote de gente da classe alta. Quem fazia a festa, mesmo, eram os sitiantes e os filhos deles. O povo da cidade só comia e apreciava de longe, quase por imposição das relações de amizade. Essa gente melindrosa não se mistura facilmente. E nem gosta de aluá!
Na cozinha, suando que nem chaleira, Sebastiana Preta, ainda que manquitolando sobre a perna menor que a outra uns vinte centímetros, comandava as quituteiras de acordo com as ordens de Dona Constância. Com olhos de lince e sorriso de gavião ela espiava o ponto do mungunzá (ou chá de burro, como chamava), a corada do guisado de capelão ou guariba e o acerto do ponto das demais iguarias dos santos de junho. – “Comidas pra inglês nenhum ponhar defeito”, dizia a dona da casa.
Tia Neca e Zé Taveira, viúva e filho do finado Aldenor Taveira, assumiam o terreiro. A lenha das fogueiras era “ponhada” em lugar seco e coberta com uma lona de caminhão para não ficar enjambrada com a umidade. - “Fogo bom é fogo pipocante e sem fumacê” - asseverava Tia Neca, vaidosa e consciente de sua relevante função. Quando elogiada pelo dentista Dr. Calixto ou por outro visitante pela beleza do fogaréu, alargava o sorriso de dois dentes e abraçada ao filho, dizia:
- Seu dotô, eu e Zé Taveira não queremos omilhar o Aldenor, nem depois dele mortinho e enterradinho. Era dele a função de atiçar o fogo pra alegria e viço dos santo. Enquanto viveu, foi vaqueiro e responsavi de fazer arder os pau. Agora, nas memória e nas honra dele, é eu e esse menino aqui, o meu Zé. Ele só tem doze anos maise já se declara como homi e pau pra toda obra.
Doutor Calixto, escutando aquela prosa, virou-se para Tia Neca e reclamou:
- Pois bem, Dona Neca, todas as crianças estão brincando, menos seu menino Zé Taveira. Deixe ele ir brincar com os garotos. Não prenda ele, tá certo?
- Tudo bem, ele vai, mais só adispois de fazer o que tem que ser feito. Minhas pernas não atura mais ir pra lá e pra cá pegá pau pra atiçar a fogueira. No final, fique tronquilo, ele vai se desbaldá de brincá e fazê zoeira. Deixe o Padre Antunes sair, tás me ouvindo? O padre disse pra nóis que os santo fica triste quando o fogo não alteia e fica murcho, vosmicê entende? Ele ainda me avisou que, sem fogueira, na outra festa os santinho fica aborrecido, não passa nem na frente da casa e zarpa pra outras banda.
Por volta das duas da manhã do dia 24, foi-se a comitiva da cidade. Quase não havia mais comida nem aluá e, só então, Zé Taveira pôde ir para a corrida da caça ao boi fujão. A corrida consistia numa variação do esconde-esconde. Um menino era o boi e saía em disparada para um esconderijo. Os outros, feito malucos, procuravam encontrar o fujão. Quem encontrasse ganhava prenda. A prenda da vez era uma bola de futebol, das legítimas, patrocinada pela esposa do Dr. Calixto. O Zé Taveira, que conhecia cada palmo das terras mas nunca havia possuído uma bola, aloprou na busca. Desabou com gana e não passou pela cerca de arame farpado. A pancada foi grande demais e, quando voltou do impacto, tascou a cabeça num toco de pau de aquariquara e desmaiou. Não achou o boi fujão, mas ganhou a bola. Na impossibilidade de ir até o hospital da cidade, a sangue frio, Dr. Calixto remendou a boca do moleque e deu uma olhada no seu côco para ver se não tinha afundado. A bola, assim, virou uma espécie moeda de enganar besta e anestesiar curativos. Deu certo!
Cinco anos depois desse acontecido, já em 1975, com o olhar perdido da bobeira, Tia Neca não mais cuidou de atiçar os “pau” da fogueira. Seu menino Zé Taveira, engraçado e “enfeitiçado” por Nina Rosa, uma moça velha de seus trinta e lá vai pancada de anos, largou a mãe e foi viver com seu rabo de saia bem longe do Recanto da Serrinha. Desde então ela não quis mais saber de fogueira. Numa cadeira de balangar ao lado de Seu Antonio João de Campinas e do Dr. Calixto, agarrada à bola ganha por Zé Taveira, ela escutava a música preferida do falecido marido Aldenor.
Olha pro céu
(Luiz Gonzaga e José Fernandes)
Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa noite, igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São João
Havia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração.
Do nada pro nada, deu um pulo e berrou a plenos pulmões:
- Zé Taveira, garoto encapetado, chega aqui seu danado! Ocê num vai correr atrás de boi nenhum! Toma, pega tua bola e brinca aqui perto d’eu e do teu pai! Anda, diabo!
Violenta, arremessou o brinquedo de estimação do filho, ganho na noite em que perseguiu um boi fujão, rasgou a cara e quase teve o crânio afundado.
A bola quicou no terreiro, uma, duas, três e mais vezes. Até que parou...
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Nota: Conto publicado originalmente em Lima Coelho.
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