quinta-feira, 14 de julho de 2011

Série A POESIA ACREANA > GLÓRIA PEREZ

A face poética de Glória Perez passa muitas vezes despercebida pelo fato do enorme prestígio que tem como novelista. Para situar e se compreender a poesia de Perez é necessário voltar à agitada e conturbada (e fértil) década de 1970. É, sobretudo, a partir dessa década que, em todo o país, irrompe um pipocar literário-social, com um enorme e heterogêneo contingente de poetas a investir, com seus versos-palavras-imagens, contra o sufoco da censura e repressão implantadas a partir de 1964 e também contra os valores morais e culturais da época. Surgia assim a poesia jovem 70, que deu um novo sentido ao fazer poético no Brasil, a semelhança do que proporcionou os modernistas com a semana de 22.

Nas palavras da professora Heloísa Buarque de Hollanda, mais que uma manifestação de denúncia e protesto, a poesia jovem foi uma explosão na literatura, jogando para o ar padrões poéticos, o que lhe valeu, inclusive, o nome de poesia marginal. A produção jovem alternativa – como a produção artesanal na literatura, os grupos de teatro independente e imprensa nanica – emerge com uma força surpreendente, procurando as brechas possíveis para uma intervenção crítica que trabalha novas formas de produção e de linguagem.

Do ponto de vista literário, os textos trabalham coloquial e ludicamente a linguagem, voltando-se para a realidade mais imediata do poeta: o cotidiano próximo, o gesto, o registro bruto do momento. A linguagem da ironia e do humor investe-se de forte sentido crítico. A poesia jovem procurou e tirou vantagem de uma dicção bem humorada, ardilosa, alegre e instantânea. Nela reivindicam-se o descompromisso, a gratuidade e a brincadeira como bandeiras da prática poética e como “bandeira” de uma postura crítica frente à ordem moral e institucional.

Constituíram o eixo dessa cultura marginal a politização das relações no interior do espaço cotidiano e a valorização das práticas artesanais e cooperativas ou coletivas, em resposta ao padrão técnico e “competente”, bem como o fechamento político. Os jovens poetas retomam a leitura pública da poesia, além da ênfase na experiência pessoal como espaço da crítica social. Ao recusar a poesia de “tese”, os poetas se voltam sobre o conteúdo de sua própria experiência existencial num momento especialmente difícil da história e da política brasileira.

É nesse contexto que se insere a poesia de Glória Perez. Ela estava ligada, principalmente, a poesia jovem produzida no Rio de Janeiro, que, em 1974, com o lançamento da “Coleção Frenesi” promoveu um verdadeiro reboliço na cultura literário-social, suscitando a urgência em se buscar novas formas e novos espaços para a poesia e a vida. Perez, por sua vez, irá integrar, em 1975, a pioneira antologia “Abertura poética, 1.ª Antologia dos Novos Poetas do Novo Rio de Janeiro”, editada por Walmir Ayala e César de Araújo. Em seguida, participa das antologias: “Mulheres da vida”, “Escrita”, ambas de 1978, mesmo ano em que publica o seu primeiro livro “Sem Pão nem Circo”; “Alguma poesia” (1979); “Maria Poesia” e “Poesia Jovem Anos 70”, ambas de 1982.

A participação literária de Glória Perez, no entanto, não se limita ao Rio. Irá integrar publicações alternativas em todo o Brasil, sobretudo nos estados de São Paulo, Paraíba, Minas Gerais e Pernambuco. Fará ainda publicações em jornais e suplementos literários por todo o país e até no exterior, além de participar de alguns movimentos culturais.

A temática da poesia de Glória Perez não foge da proposta da poesia jovem 70, focalizando, sobremaneira, na questão de gênero, assumindo o discurso feminino, e uma forte e sutil crítica a certos valores, morais e culturais, preestabelecidos e canonizados por determinados grupos sociais. Características estas que poderão ser observadas nas poesias a seguir, a ressaltar a beleza e o primor literário desta que há muito encanta o Brasil.

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a palavra
é
arma
tantas vezes
a única
possível

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meu filho
se te disserem que isto é assim
porque sempre foi, porque sempre será
pergunta se tudo no mundo
não pode mudar

pergunta se o tempo não guarda outro tempo
assim como a fruta já está na semente
repara que em tudo floresce um avesso
e o sonho pressente

pergunta de tudo o que vês e o que sentes
é teu esse mundo com tudo o que há
porque só de ti é que vai depender
mudar pra valer ou deixar como está

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PEDAGOGIA MODERNA

mamãe leu piaget
por isso diz o porquê
de tudo o quanto me obriga
contestando a moda antiga
nem quer ser mãe – só amiga
e me dá toda a liberdade
de fazer sua vontade

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PENALIDADE MÁXIMA

a gente cresce escutando
– mulher nasceu pra sofrer
até o que dá prazer
nela promete doer

tão natural da mulher
é o sofrimento que, lógico,
o que a vida não lhe der
lhe dará o biológico
– as regras de todo mês
a dor da primeira vez
as penas da gravidez
a violência do parto

e o cabedal é tão farto
que a conclusão não permite
atenuante sequer
– viver é purgar a culpa
de ter nascido mulher

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SINTOMÁTICO

era visível:
a cada dia
você ficava
mais invisível

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BONS TEMPOS AQUELES

tenho saudades de quando
nos amávamos
vinhas de outras mulheres
eu te negava a boca
vasculhava o bolso
e tu desconfiavas
daquele namorado antigo
que quase casou comigo
reclamavas da torta
maldizendo a sorte
e batias a porta

vez por outra – rosas
mobília reformada
juras de nunca mais
nenhum atrito
e nova lua-de-mel
depois do exame de corpo de delito

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VERDES ANOS

minha tia escutava bolero
dias e dias só chorando
secava
maldizendo a sorte das mulheres

despudorado coração exposto,
assim que eu queria sofrer
quando ficasse grande

-

amor às vezes dá nisso:
alguns quilos a mais
esperanças a menos
e filhos – pra acreditar
que mesmo assim
valeu a pena

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MERCADO DE ESCRAVAS

ser livre para escolher
a mão que bate
e a boca que me cospe

-

ADOLESCÊNCIA

eu lia de candeeiro
e fazia que estudava
passei tinta no cabelo
bebi vinagre escondido
beijei no canto da rua
pulei janela de quarto
escrevi o nome dele
com o facão da cozinha
na casca de uma mangueira

e toda segunda-feira
a mãe me aparava as asas

-

viver
vicia

-

PÃO E CIRCO

fizemos tudo:
viagens, outra filha
mudar de casa
renovar a mobília
mas o amor acabou
e equilibristas
mantemos nosso lar
com amantes e analistas

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REVERSO

amor também envenena:
o mais das vezes não mata
mas deixa a alma pequena


PEREZ, Glória; MICCOLIS, Leila. Mercado de escravas. Rio de Janeiro: Achiamé/Trote, 1984.
PEREZ, Glória [et al.]. São Paulo: EDICON, 1990.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Poesia Jovem dos anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982.

3 comentários:

  1. "a palavra
    é
    arma
    tantas vezes
    a única
    possível"

    A obra de Glória Perez, assim como toda grande obra de todo grande autor, não é conhecida fielmente como deveria. Os acreanos, principalmente, devemos buscar saber e conhecer as particularidades das palavras dessa escritora, que marca uma fase insólita da literatura nortista. Somos aquilo que lemos e aprendemos, e devemos tornar esse hábito um dogma pessoal de aperfeiçoamento e crescimento.
    Ler - e não só assistir - também é um exercício.

    Grandes dicas! =)

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  2. Olá meu amigo Isaac, parabéns pela postagem, é sempre bom conhecer a história de pessoas inteligentes e batalhadora, principalmente quando é do Acre, nosso estado. De fato as poesias de Glória Peres são belíssimas.
    Abraços da amiga que sempre visita seu blog.
    Tailândia Belmiro.

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  3. Boa noite!
    Olá meu amigo!

    Eu não conhecia os versos poéticos de Glória! Gostei***

    Isaac! Na segunda eu estava no centro procurando alguns artesanatos, e fui em uma lojinha e descobri que é do artista plástico Rivasplata.
    Fiquei sem graça, porque eu já tinha ido várias vezes nesse lugar e não sabia que era de Jorge Rivasplata. (acho que o problema é porque as vezes fico muito no meu mundinho - da faculdade pra casa. E passeio pouco pela cidade).
    Ah! Eu vou me matricular nas aulas de pintura. Quero muito fazer. E será uma grande honra ter um professor como Ele.
    Talvez essa semana ainda eu passe lá no atelier (Rivasplata) para tirar umas fotos.

    Amigo! Passei aqui tb para te deixar "Um ABRAÇO"!

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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA


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