quinta-feira, 22 de setembro de 2011

LIÇÕES DE ANTÔNIO MULATO BENEVIDES - Leila Jalul

BR 364 depois do asfaltamento.
De tanto bater roda naquele trecho, de cor e salteado e até de olhos fechados, Antônio Mulato Benevides sabia de cada curva, cada buraco e dos caminhos onde os bichos atravessavam a pista mais comumente e de forma inesperada. Já lá se iam vinte e cinco anos de pneus furados, calor massacrante, chuvas impiedosas, atoleiros a perder de vista e quase intransponíveis, poeira maldita e passageiros desnorteados.

A hora de parar se aproximava. Seu espinhaço não mais respondia a uma freada brusca. As pernas arroxeadas anunciavam uma trombose a qualquer momento. Era hora de parar, sim, mas antes deveria treinar dois novos motoristas para a renovação do quadro da empresa. Ensinar, precisamente, não o caminho. Este e outros, inclusive os descaminhos, qualquer um poderia aprender sozinho. Deveria, isto sim, dizer das armadilhas e dos percalços. Regras básicas de defesa e de ataque, inevitáveis e necessárias à arte do bem viver de um trotamundos.

Pé de Chumbo e Pega à Unha, como eram conhecidos Odonias Firmino e Joel de Souza, acreditando, ou não, prestavam atenção ao que dizia Mulato Benevides. Às vezes, pelo pecado do excesso, eram tantas as marolas e tão detalhadas as fantasias que, em coro, apenas diziam: – “conta outra, Benevides!” Durante a viagem, de forma sacana, se revezavam nas perguntas cretinas.

– Conte, vamos!

– Ó, bando de otários, vou contar não! Rezem para que nunca aconteça com vocês o que já aconteceu comigo. Nesta BR eu já vi caboclo peludo atravessando a estrada em noite de lua cheia. Já vi mulher parindo menino com cabeça do tamanho de uma coité grande e sem dar um único gemido. Vi índios segurando sucuri de quase oito metros e com um bezerro na pança. Vi de tudo, moços! Mais até do que precisava ver.

– Vá dizendo, vá!

– Eu já carreguei o menino Zezé de Camargo quando ele começou a cantar.

– Virgem Maria! E ele cantou pro senhor ouvir?

– Não, seu bestalhão, ele cantava pra quem quisesse ouvir. Até hoje sou fã desse menino, pelo tanto que era humilde. Se um dia encontrar com Zezé, pergunte se ele já cantou na praia da Base e na balsa do Madeira?

– E o Roberto Carlos? Carregou?

– Não, quem carregou o Roberto Carlos foi teu pai, filho duma égua! E nas costas! Cabra besta! Só burro carrega alguém nas costas, ouviste bem?

– Qual foi o pior passageiro que o senhor já transportou nesta vida?

– Ó, rapaz, já carreguei até defunto. O pior dos piores entre os piores, entretanto, foi uma mulher. O castigo dos castigos e o maior desgosto que já passei na minha vida. Deixem chegar ali na balsa que eu conto. É uma longa história.

– Era bonita ou requenguela?

– Era uma mulher. Uma mulher... Espera chegar à balsa, demente! Não sabes que o apressado come cru!

Travessia balsa do Rio Madeira - RO.
A fila de espera para a travessia do Rio Madeira era quilométrica. Os passageiros desceram para comer os brebotes gordurosos e os três motoristas ficaram na cabine conversando. Pelo fato de serem responsáveis pelas vidas que conduziam eram terminantemente proibidos de ingerir “quebes” de macaxeira e arroz. Na maioria deles havia bactérias e todo tipo de porcarias próprias das comidas de beira de estrada. Naquelas bandas, sim. Isto posto, só biscoitos Maria e bolachas Cream Cracker. Para engolir com refrigerantes ou sucos naturais.

– Desembucha, Benevides! Como é que era a sua mulher fatal? Loura, linda, morena, magra, gorda, nova, velha, sorriso Colgate ou desdentada?

– Vejam, a senhora era de meia idade e forte, tipo setenta e cinco a oitenta quilos bem distribuídos. A BR-364 ainda era (e é!!!) um inferno de piuns, mucuins e carapanãs. Peguei o carro em Vilhena, tão logo depois da vacinação contra a febre amarela e o colega antecedente me avisou que tinha uma passageira trabalhosa e impertinente, com destino a Rio Branco. Ela queria fumar quando as janelas estavam fechadas e descompunha quem tentasse sentar na cadeira vazia ao seu lado. Era bonita a danada!

- Passaste ela no toco e no rolo?

Fazendo de conta que não ouviu a insolência de Pega à Unha, Antônio Mulato Benevides continuou.

– A dona acendeu um cigarro bem na hora em que um senhor de idade entrou e sentou-se ao lado dela. Tossindo e espirrando como se tivesse cheirado rapé o velhinho foi à cabine para fazer a reclamação. Parei o carro, fui falar com ela e o desaforo veio na hora: - “Negro filho da puta, quem você pensa que é? Por esta e por outras razões é que não gosto de preto nem de pobre! Ô raças vagabundas!”. A “zinha” era negra como eu, fiquem sabendo!

Pega à Unha, revoltado, vociferou: – “Benevides, homem, mas tu foste muito frouxo demais da conta! Eu teria jogado esta égua na beira da rodagem e metido o pé no acelerador”.

– Não é assim, meu caro! Houvesse um posto policial eu teria tomado a decisão acertada e registrado uma queixa. É assim que deve ser, e assim é de lei. O comandante do navio, o do avião, o condutor de veículos coletivos, seja trem, seja ônibus, é o responsável por manter a ordem e a segurança, ouviram? Não havia posto policial e tive que continuar. Agora, por favor, não interrompam mais. D’uma encarrilhada só eu conto o fim do drama.

E continuou:

– Durante a travessia da balsa, vocês sabem, nem que seja a mãe de vocês, pode ficar a bordo. Jamais esqueçam essa regra de segurança! É sempre melhor tirar um afogado de dentro de um rio do que tirar um afogado de dentro de um ônibus afogado num rio, entenderam? E a dona queria porque queria ficar lá dentro, mas, sem alisados e com voz grossa, obriguei-a a descer. Lasquei-me de cabo a rabo, mas cumpri minha obrigação. A dona desceu e, na rampa de pranchas de madeira, enfiou a canela numa das brechas e ficou engatada.

– Bem feito! Deus é justo!

– Cala-te, Pé de Chumbo! Posso acabar? Tu queres ser motorista, açougueiro, carrasco ou Deus?

– Nestas horas, juro, só queria mesmo ser era doido!!!

– Pois bem, o grito de dor que a dona deu, nem que eu viva duzentos anos vou esquecer. Foi um verdadeiro esturro de fera ferida...

E seguiu contando:

“Corri, meti meus braços debaixo dos sovacos dela e puxei-a pra cima. A canela já estava roxa e sangrando. Juntei-a do chão, carreguei aquele monte de quilos para o ônibus e fui fazer um primeiro socorro. Peguei minha toalha de banho no encosto da cadeira, tirei as pedras de gelo da minha frasqueira de água e embrulhei a perna da distinta. Rapazes, ela se urinava de tanta dor. Ainda assim ela me xingava de negro filho da puta, corno e de veado pra baixo! A diaba blasfemava contra Deus e contra todos. Confesso que nunca ouvi tantos palavrões duma boca só!

Minha coberta de lã, para que o mijo da braba dama não escorresse pelo ônibus inteiro, lhe serviu de fraldas. A cada mijada, debaixo de gritos, eu parava o carro, descia e torcia a coberta para recolocá-la debaixo da bunda da sofredora e irascível criatura.

Quando cheguei ao primeiro local que tinha telefone, ainda cumprindo minha obrigação, liguei para a empresa e pedi que fosse mandada uma ambulância para a rodoviária a fim de encaminhá-la para atendimento. Também dei o número do telefone da casa de uma irmã da madame para que fosse aguardá-la e providenciar internação e tudo o que fosse necessário. É assim que vocês têm que fazer numa situação dessas. Esqueçam as raivas, ofensas e tudo o mais”.

– E pode ter mais?

– Pode! Pega à Unha e Pé de Chumbo, entendam de uma vez por todas: aqui nesse “finzão” de trecho e de mundo, sem lei e sem ordem, tudo pode! Tanto é que, ao retirar a senhora acidentada de dentro do ônibus e colocá-la dentro da ambulância, a irmã dela cuspiu na minha cara e, por ser influente na cidade, através de um político, conseguiu que eu fosse dispensado da empresa.
Nesse momento a fisionomia de Benevides mudou. Mãos crispadas, olhos avermelhados pela retenção das lágrimas e parecendo ter trazido o ontem para o agora, disse aos futuros motoristas que o escutavam atentamente: – “Ao chegar em casa encontrei minha esposa muito doente. Ela veio a falecer logo em seguida, e, creiam, sem que nada disso soubesse. Paguei o preço por ser negro e honesto em total silêncio. Meses depois fui recontratado pela mesma empresa que agora emprega vocês. Espero que tenham a mesma sorte e a mesma serenidade que tive no cortar estradas e lidar com gente e animais. Honrem a profissão”.

O restante da viagem foi com pouca prosa e muitos pensares. Pé de Chumbo e Pega à Unha entenderam o pranto e a dor de Mulato Benevides. Sequer pediram para escutar os CDs com as músicas do seriado Carga Pesada e os da Sula Miranda, consagrada e reverenciada rainha dos caminhoneiros e viajantes das estradas deste bravo e esburacado país.

Em Vilhena, no ponto de apoio, a janta foi tranquila, mas não tanto. Pega à Unha mexia-se na cadeira como se tivesse pregos na bunda. Captando as razões, ouviu de Mulato Benevides: – “Pergunta logo, homem! O que queres saber mais?

- O que aconteceu com a mulher? Ficou sabendo de alguma notícia dela?

– Não sei. A vida dos passageiros não importa. O próprio nome já diz que são passageiros, que passam... Espero que ela tenha sido muito feliz e arranjado dinheiro para só viajar de avião.

No outro dia, pela manhã cedo, embarcaram para a viagem de volta. Conferidos os passageiros, bem na primeira poltrona, Mulato Benevides viu uma índia com duas crianças. A “mais” grandinha tinha cara de capeta e, antes mesmo da partida, já estava dando uma ideia do que poderia aprontar. Não deu outra!

O moleque fazia cooper, salto com vara e salto à distância no estreito corredor. Era um atleta. Depois tropeçava, caía, levantava e abria um berreiro enlouquecedor. Uma melequeira danada escorria da boca e do nariz do cabeça de bagre olímpico. Ainda assim, corria novamente, se esfregava nos passageiros, limpava o nariz na capa das poltronas, até que, exausta, deitou no colo da mãe e dormiu. De repente, danou-se a vomitar e a chorar.

– Pega à Unha, vai ver o que está acontecendo ali e cuida! Tens que limpar o carro! Ninguém aguenta pixé de vômito. Cuida!

– Logo eu, Benevides?

– Sim! Depois o Pé de Chumbo, se precisar, vai atender o pajé mirim. Cuida, homem!

Ao voltar para a cabine, cara de poucos amigos, foi recebido pelos colegas com galhofas e piadinhas. Benevides, muito sério, olhando para o ajudante roxo de raiva, faz a pergunta pronta e ajustada para a hora:

– Queres dirigir?

– Por qual motivo?

– Ora, ora, para que possas parar o carro, jogar o indiozinho filho d’uma égua na beira da rodagem e pisar no acelerador!!! Não é assim que pensas?

– É o que dá vontade! Bom seria poder estrangular!!! Vida de merda!

– Calma, amigo! Muita calma!

Daí pra frente, muito esperto, o indiozinho ainda fez umas danações. Nada que atrapalhasse o trânsito e a audição da música Fogão de Lenha, nas vozes dos arrepiados canarinhos Chitãozinho e Xororó e muitas outras dos novos e velhos cantantes que sabem da vida errante, inclusive as dos filhos de Francisco, Roberta Miranda e as do eterna cara de sofrença, mais conhecido por Amado Batista.

Estava cumprida a missão de Antônio Mulato Benevides

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Publicado originalmente no site Lima Coelho.


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DOM HÉLDER CÂMARA


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