A Casa de Mme. Antonieta Attilio Colnago, 1966 |
Quem viu Marinês aos 55 anos, seu último de vida, por mais que tenha sido amigo íntimo, desde a infância até, não a reconhecia. A tristeza impressa no seu rosto parecia feita com ferro em brasa, o de marcar o gado. E foi bonita, mimosa e faceira a menina Marinês... Tinha viço, carisma e alegria quando Manuel a conheceu.
Filha de gente da alta, ainda assim, não garantiu direitos de viver suas próprias escolhas. O pai, um empresário forte da construção civil e a mãe, uma juíza de direito do interior, não hesitaram em dá-la como caução da grande dívida acumulada pela desordem financeira do casal. Marinês tinha apenas 16 anos... A dívida dos pais chegava a quinhentas vezes isso. Tão grande quanto o amor de Manuel pela menina, a bela menina, cujos dentes pareciam mais um colar de pérolas.
Os tempos eram assim...
Tempos de grandes obtusidades...
Numa reunião entre o pai, a mãe e o presidente da câmara cível, ficou decidido: a partir da sentença favorável aos réus, Marinês passaria a pertencer ao desembargador Carlos Rosas, pelo menos três vezes por semana, à exceção do mês em que sua legítima esposa e os três filhos, então residentes em João Pessoa, viessem a estar com ele. Marinês deixou de ser gente e passou a ser uma espécie de coisa dada em pagamento. Abriu-se a margem para que a tristeza se instalasse e encardisse seu jovem espírito.
Quando quis se revoltar, estava tarde, bastante fora de tempo. Prevaleceu a lei do mais forte. Conseguiu sair das garras do seu dono ainda bem jovem. Desiludida e amarga, irremediavelmente amarga. As chagas da vergonha ficaram nela impregnadas e Manuel já estava vivendo uma vida de esposo e pai.
Os tempos eram assim...
Tempos do império das maldades...
Tempos do império das maldades...
Para os que conheceram Marinês, doeu a visão do seu final. Num American Bar de periferia, sobre o palco iluminado com luzes roxas de cabarés sem classe, ela tombou. Estava cantando a música Molambo quando caiu com um estranho engasgo. A próxima música seria Devolvi. Músicas de lamentos e reveladoras das dores dos amores mais profundos. No chão, com luzes direcionadas e precisas, através da boca entreaberta mostrava dentes apodrecidos e amarelados, infinitamente distantes de serem aquelas pérolas que ostentou na mocidade.
Entregue ao álcool e às noitadas sem freios, fez da voz e das baladas tristes as únicas alternativas de continuar respirando. Do amor não mais sabia. Sabia, sim, ser suicida de morte em doses homeopáticas. Sabia...
Tornou-se um molambo. Um molambo qualquer. Sem julgamentos, somente Manuel chorou na sua despedida e, sobre o caixão barato, ao lado de uma rosa, deixou uma fotografia de Núbia Lafayette, a cantora preferida de sua eterna amada. Os tempos eram assim...
Tempos de atraso...
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Texto publicado originalmente no site Lima Coelho.
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