Hoje vou tirar uma onda de Lucas Leles. Ele não sabe, até por não ter revelado para ninguém, que adoro o jeito como escreve. Sou chegada a uma anarquia e até me envergonho de confessar. Lucas Leles é apenas um menino... e eu, há muito, dobrei todos os cabos, inclusive o Cabo da Boa Esperança.
Disseram os escribas que Maria, a mãe do menino Deus, chorou aos pés da Santa Cruz. Ajoelhados aos pés dela, muitos pecadores juraram eterno amor e não cumpriram.
Pés, pés, pés...
Também sou pisciana. Carreguei nas costas o peso do meu próprio mundo e dos malfazejos dos meus ancestrais da linha mais direta. Tenho os pés deformados e fudidos. Pés que não valem o peido de uma vaca parida!
Na primeira infância, durante uma epidemia de poliomielite que abocanhou duas amigas - Mirtes e Ivone - paralisei e tive febre alta por um período longo. Meu avô, preocupado, mandou queimar e retirar óleo de mais de dez quilos de sementes de gergelim. Ficava em brasa quanto entanguida pelas compressas ardentes do tal óleo. Por Deus, apenas por Ele, não resolveram envernizar minha cara de pau com o tal unguento. Deixaram que fosse polida com óleo de peroba. Frio, mesmo!
Mais tarde, jogando bola para angariar o respeito e o amor dos meninos da minha ruela de barro, trucidei o pé esquerdo. Depois o direito. Quebrei os dois braços que foram consertados com gesso de clara de ovo de pata e goma de taioba. Engoli duas moedas que expeli de forma natural. Hoje, que preciso obrar dinheiro... Necas!
Aos oito, nove anos, nem lembro ao certo, tive umas feridas na cabeça. Fiquei pelada e usando "biruta", um acessório da época, feito com tecidos de renda ou seda e altamente invejado pelas meninas sem posses. Mamãe passava um líquido rosa nas perebas purulentas que tinha o nome de CALADRIL. Era uma espécie de solução que, ao secar, engelhava a pele, o couro cabeludo e tudo que estivesse ao derredor, inclusive os miolos da cabeça. Sofri. Como sofri!
Com quatorze anos, mal sabendo andar com sapatos baixos, arranjei meu primeiríssimo emprego. A sigla da autarquia era SAL - SERVIÇO DE ÁGUA E LUZ.
O SAL era dirigido por um engenheiro educadíssimo, negro com mistura de holandês, olhos verdes- esmeraldinos, especialmente bonito e bem preparado. O nome dele era Luiz Guilherme de Souza (ou seria da Silva?). Nunca estive frente à uma pessoa mais especial que ele. Nunca! Nunca, mesmo!!! O maior e melhor chefe que tive a honra de conhecer. Pela decência e honradez.
Quis apresentar-me bem no primeiro dia. Na Sapataria Acreana, sob o olhar feio e o nariz torcido da proprietária, tirei fiado um par de sapatos de princesa. Era cor de rosa, salto dois e meio, cheio de buraquinhos para aerar o suor dos “pisantes” e arrematado por um laçarote dourado. Uma graça!
A repartição abria às sete e trinta para o batimento de ponto. Às quatro e quarenta da madrugada eu já estava lá. Suava, esfregava as mãos e coçava a cabeça em frenesi. Minha intenção era impressionar o doutor e tornar-me a mais eficiente das empregadas do SAL. Não era tão fácil, mas era simples e não impossível. No pequeno escritório, éramos seis: Dona Maria das Graças, a diretora; Dona Valdívia, a secretária do gabinete; Aurélio Vargas, o chefe do pessoal da rede; Mônica Andrade, a chefona da distribuição das contas de energia; Marcionília Maria, a servente, uma biscate que adorava puxar o saco do chefe e eu, que nada era, até o dia que pudessem dizer quem era eu.
Voltando aos pés, cheguei tão cedo que não observei a separação e o lodo marrom dos tijolinhos da entrada. Meti o pé direito em meio à vaga escorregadia e... “desmenti” mais uma vez o pé direito. Isso quer dizer que entrei com atestado médico antes de conhecer os amigos e as tarefas do SAL. O sapato cor de rosa deu o maior azar. Quando a coisa engendrou, finalmente, tornei-me uma eficiente funcionária.
Esperta que era, de tanto preencher fichas de cobrança, decorei de cabo a rabo os nomes de avenidas, bulevares, ruas, ruelas, avenidas e becos. Sabia de cor a numeração dos postes. Os logradouros sem nomes e as casas sem número, num piscar de olhos, sabia dizer para os estafetas entregadores das contas o nome dos vizinhos da esquerda e os da direita. O que mais interessava era que houvesse o pagamento pelo consumo dos watts e dos kilowatts. Eu entendia de direção. Glória!
Na reestruturação do órgão ganhei, por merecimento, um cargo gratificado e abono por produtividade. Passei a ser conhecida como a Leila do SAL. Glória!!!
Anos depois, outra miséria caiu sobre mim. Quebrei a perna em oito lugares. Foi macumba, sei. Lasquei-me! Foram três anos sobre uma cama. Tonéis de dinheiro com fisioterapia. O tornozelo havia sido triturado. Mas venci. A rainha do SAL não haveria de morrer no escuro. Glória!!!
Sequelas? Sim! Há sempre um par de muletas no canto do meu quarto. A cadeira de rodas, por teimosia e por considerar humilhante e denotadora de fraquezas, doei.Não demorou muito, em 2004, inebriada que estava pela vitória do PT, apaixonada pela atuação da então Senadora Marina Silva e por meu amigo Raimundo Angelim ter conseguido ser eleito Prefeito de Rio Branco, empunhando uma bandeira vermelha, saí do choco de galinha velha e fui ver a festa. A praça estava lotada. Apinhada de gente vermelha com a estrela do 13. Marina discursava com aquela voz de, de, de... taquara rachada, como dizem os contrários. No afã de exercer minha parcela de felicidade e cidadania, quis entrar no meio do povaréu. Ao descer da calçada da fama da Praça Plácido de Castro para o asfalto, onde estava o aglomerado dos que não pensam, mas votam, enterrei a perna esquerda (a já quebrada em oito lugares) na sarjeta.
Nem pude aplaudir Marina. Estou até hoje devedora. Dali, carregada nos braços de quatro elementos sóbrios, louve-se, cheguei ao carro do SAMU, estacionado atrás do palanque. Para alcançar o PS, em dias normais, gastava-se, quando muito, uns três minutos. Bastava subir uma ladeirinha da Getúlio Vargas. Naquele dia de Raimundo Angelim vitorioso, mais de meia hora. Dizer de minha aflição... não, não digo. Para bom entendedor, até silêncio leva crase.
Enfim, chegamos. Cheguei. Mesmo com dores atrozes, corri a vista pelo saguão. Em coma alcóolico, uns vinte. Baleados uns dez. Feridos de arma branca, outros tantos. Naquele dia, especialmente naquele, pediatras faziam suturas em esfaqueados; cardiologistas aplicavam glicose nas veias dos bêbados e ginecologistas retiravam balas alojadas nas cabeças dos eleitores mais briguentos e fregueses das vias de fatos. Uma verdadeira força-tarefa pela vida. Um bafafá!
Entrei na ala de ortopedia. Ali vejo o jaleco branco que escondia o mais famoso quebrador e entortador de ossos retilíneos da paróquia. Não falo o nome dele por respeito a mim mesma. É conhecido o bastante por sua avessada fama. Perdi o fôlego. A dor estava maior que a razão e, na base do “só tem tu, vai tu mesmo”, deitei na maca. Meu pé estava torcido, ferido de morte e sujo de mijo de ratos, salmoura de picolés, bitucas de cigarro e placas de escarros dos lascados do peito. Ainda assim, juro pelo que há de mais sagrado neste mundo, o maluco pediu que minha acompanhante fosse ao banheiro e lavasse meu pé. O pé foi lavado sem sabão, pois que não havia. Desse mesmo jeito, sem asseio adequado, sem radiografia reveladora, foi empacotado no gesso. O infeliz nem olhou o arranhão do tornozelo e deu por encerrado o procedimento. Gloria! Eu merecia!
Pela madrugada, acompanhada do índio apurinã, meu anjo da guarda, rugi de dor. O pé não mais cabia na bota branca. Com o auxílio de uma minúscula serra fita e uma tesoura cega, após suores e gemidos, fiquei dela liberta. O inchaço se expandiu. O arroxeado do ferimento acentuou.
Depois de toda essa epopeia, na velhice agora, eis que me aparece uma síndrome de Renault. Nada foi ou é pior que ela. Para os íntimos, na base da brincadeira, afirmo que essa síndrome só acomete “meninas poderosas” ricas e desocupadas. Não faço parte do rol.
Não durmo antes das quatro da manhã, às vezes nem às cinco e, às vezes, nem consigo relaxar para pregar os olhos e amortecer o cérebro. Não tenho dores: somente ardências. É como se caminhasse sobre brasas ou sobre barras de gelo. Ambas queimam com quase a mesma intensidade. E levantam pipocas. Da médica, ainda tendo que achar bonito, ouvi a sentença: vou morrer com isso e não por causa disso. Será?
Será sendo, ou será não sendo, devo estar feliz comigo mesma. Andar em volta desse meu esqueleto por quase sessenta e quatro anos, tenho vivido sessenta e quatro vidas. Acrescente-se a tudo sessenta e quatro amores e outros tantos de perdas e desgostos. É vida demais para dois pés apenas. Quem me invejar que atire a primeira pedra.
Leila Jalul |
São de Neruda os versos que transcrevo abaixo. Com eles quero encerrar o ano, e, numa tentativa de ficar próxima da escrita de Lucas Leles é que me despeço, temporariamente, do site do Lima Coelho. Meus pés entrarão em férias, nem sei se merecidas. Será um tempo de ajustes no processo criativo. Os leitores agradecerão. Voltarei em fevereiro, bamburrada de ideias e saudades.
Aos que estiveram prestigiando o site, seja com poemas, contos, artigos, crônicas e comentários, um desejo de paz e saúde. Que venha 2012!
Até breve!
“Walking Around
Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.
Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.
Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas”.
---
* Publicado originalmente no site Lima Coelho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
Outros contatos poderão ser feitos por:
almaacreana@gmail.com