Isaac Melo
O contista, valendo-se aqui de Alfredo Bosi, é um pescador de momentos singulares cheios de significação. É o que faz Leila Jalul em Minhas vidas alheias, obra a marcar sua estreia no conto. Conhece-se o rasgo da autora como cronista (Suindara (2007) e Das cobras, meu veneno (2010)) e poeta (Coisas de Mulher, coisas comuns, coisas de mim (1990) e Absinto maior (2007)), agora, no conto, embora permaneçam suas características próprias, o seu fazer literário assume uma nova dimensão, menos intimista memorialista para uma mais visionária, sem, no entanto, fugir de um realismo crítico.
Minhas vidas alheias, a começar pelo título, é singular, trágico-humano, paradoxal. Nele, Leila Jalul se apodera de tal forma de suas personagens (linguagem e ambiente) que acaba por fazer das vidas alheias uma “extensão” da própria vida. O livro reúne 26 contos, em que ficção e realidade dão-se as mãos, pois como ressalta a contista: “Não adianta querer negar as evidências. Ficção e realidade são confluentes...”. Além disso, uma espécie de determinismo genético, aliado a certas patologias, e os elementos sócio-culturais exercem uma influência significativa na trama dos contos: “Inegável, também, é a carga negativa que algumas famílias arrastam vida afora. A genética faz parte disso. O restante fica por conta da assertiva de que o ambiente faz o homem e, por fim, some-se a educação, ou a falta desta”.
A música e a poesia, como nas demais obras de Leila Jalul, são características que persistem em Minhas vidas alheias. A obra congrega uma miscelânea de fatos e ambientes, indo dos seringais amazônicos às encantadoras paisagens do norte da Itália. A temática também é variegada e não deixa de tocar em pontos críticos e polêmicos, a saber: situação de trabalho infantil (O Oleiro Galenteador), alcoolismo (Pacto é Pacto), pedofilia (Magias e Promiscuidades), drogas (Anelise e seus Bofes), homossexualismo (Rojão Fatal), etc. A presença da mulher também se sobressai e perpassa praticamente todo o livro, e assume um lugar central, como nos contos: Rosa dos Ventos, Estranho Reencontro, No Úbere de uma Vaca Também Bate um Coração, Fugir é Preciso, etc. São mulheres, em sua maioria, de atitudes nobres, que não perdem sua dignidade mesmo quando feridas e subjugadas pela cultura patriarcal. Na literatura leiliniana, a mulher tem vez e voz, não por uma simples oposição ao machismo, mas como uma afirmação da essência do ser mulher, para além das circunstâncias histórico-sociais.
No conto “Árvore Gene(i)lógica”, Leila Jalul realiza aquilo que afirmou Alfredo Bosi, a saber, que o conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra. É o conto mais longo de todos. Dividido em nove subtítulos, conta a história de uma família, formada por sete filhos, dos quais a vida de seis é marcada por tragédias. A contista quer acentuar a questão da genética, da “carga negativa”, do ambiente, da educação, como fatores que podem ser determinantes no destino das pessoas. Mas, ao mesmo tempo, é possível fugir desse “determinismo”, como demonstra a personagem Sayto, pois “sempre há uma brecha para a bondade”.
Os contos leilinianos às vezes sobem ao anormal, ao grotesco, ao macabro, tal como a vida muitas vezes também se apresenta. É o absurdo do agir humano elevada à sua potência maior. É a mãe que mantém a própria filha em cárcere privado, e que usa como sopeira, para servir a seus convidados, um penico inglês de próprio uso (A Louca de Caxangá); é o professor de literatura que faz luto por um palito de fósforo (Elvis Morreu); é o desfecho fatal do irmão que mata o outro a machadadas, depois de sofrer humilhações por ser homossexual (Rojão Fatal); é a história da jaqueira que, ao seu redor, minava uma água escura e fétida, pois aí o pai enterrava as próprias filhas, depois de matá-las (A Jaqueira Sombria), etc. Nisso tudo, a autora não quer enfatizar em si a violência, mas, como o fator psicológico pode ser preponderante para incitar ou coibir determinadas ações humanas.
A invenção do contista, diz Bosi, se faz pelo achamento de uma situação que atraia, mediante um ou mais ponto de vista, espaço e tempo, personagens e tramas. É o que ocorre no conto “Estranho Reencontro”. É a história de uma juíza, Suzette, que na hora de pronunciar a sentença reconhece o gentil rapaz, que dois anos antes lhe cedera o quarto para dormir, pois no único hotel do lugar já não havia mais vaga disponível, quando ali estivera a prestar concurso. O voltar-se e o olhar do réu para a juíza no instante da leitura da sentença marca o coração do momento inventivo do conto, pois aí a contista explora a hora intensa e aguda da percepção.
Mas Leila é Jalul, como alguém já ponderou. Sabe dialogar e retirar a emoção que deseja de seu leitor. Não é isso que faz em “No Úbere de uma Vaca Também Bate um Coração”? O modo como a contista realiza a descrição é formidável. A história de Chiara, que tem uma vaca como amiga e um cachorro por fiel companheiro, revela uma mulher de jeito simples, daquelas que têm apenas duas mãos e o sentimento do mundo, como ensina Drummond. Ou então, o conto “Não me Maltrate, Robinson!”, a história de uma criança recolhida da rua por um polonês e adotado como filho. O jovem se torna tão apegado à família que chega a demonstrar mais amor pela avó adotiva, quando esta falece, do que os próprios netos. Tal atitude demonstra que os sentimentos não dependem apenas dos laços consanguíneos, mas é algo também que pode ser cultivado e construído.
Com Minhas vidas alheias Leila Jalul se afirma ainda mais como uma das escritoras mais preeminentes das letras acreanas na contemporaneidade, quiçá, uma das mais lidas também, como demonstra seu público fiel no conceituado site Lima Coelho. E tudo ocorre naturalmente, sem alardes, sem holofotes. O vírus Jalul é benéfico e contagioso, só mata fazendo viver. Vida é o que brota de suas páginas, com o poder de fazer com que as vidas alheias se tornem minhas também, nossas, na comunhão do sofrimento e das esperanças, sob o mesmo altar da vida. Por fim, quero fazer ecoar minhas palavras com as de Thomas Mann, em Doutor Fausto, a saber, que a análise necessariamente toma a aparência de frieza, mesmo que se realize num estado de profundíssima emoção.
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Mais sobre a obra de Leila Jalul:
* Texto publicado originalmente no blog do jornalista Altino Machado.
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