No sábado, dia 17, tentando umas manobras radicais, saí de casa para um banho de piscina e um almoço em família. Não sou acostumada a almoços em família. É muita pressão! É tudo muito cheio de segundas, terceiras e quartas intenções.
Para não bancar a Dona Encrenca, fiz uma galinha caipira fake, e fui, cheia de má vontade. Família, no dizer de alguém, é um tipo de partido ao qual você nasce filiado e sem direito a ficha de desfiliação. Fui bem comportada, mas... Deu o maior bode.
Piscinas, para velhos tronchos, inseguros e deformados, que nem eu sou, deveriam ser almofadadas, antiderrapantes, rasas e sem escadarias, de preferência. Diriam vocês que isso não seria piscina, nem banheira, e sim um tanquinho de molhar e refrescar a bunda. Tem nada demais se pensarem assim. Não fico ofendida ou magoada. Tartarugas nunca ficam ofendidas, está me ouvindo, Genaro? Borboletas e sapinhas, sim!
Pois bem, acompanhada por um parente, não quis descer para a água sem que antes ficasse segura. Tentei ficar de joelhos, sentar no chão da borda, sentir firmeza nas pernas e descer a passos de tartaruga. De mansinho... EU SOU UMA TARTARUGA! Descobri isto no sábado.
Final de papo: após uma fisgada no joelho, senti o drama, apoiei o corpo com a mão e pé direitos e... Lasquei-me inteirinha. Fiz uma luxação de grau 3 (depois do Idílios perigosos, por imitação, resolvi pontuar todas as minhas dores e sentimentos). Meu pé está com as mesmas cores da tinta do jenipapo e da casca de nogueira: roxim, roxim; quase pretim, pretim!
Em desespero, chamei minha Flor de Lys.
- Luzinete, minha nega, venha pra cá. Está só ou mal acompanhada?
- Estou com Deus, patroinha. À sua disposição e doida para atualizar nossas conversas. Vou de táxi?
- Não, venha de jegue que demora menos, estou com a razão?
- Tô chegando!
Não deu uma hora e Luzinete buzinou o interfone, discretamente e de forma delicada e suave. Genaro, que até pode dar uns coices de vez em quando, é mais sutil, tenham certeza! Levantei-me, usei a cadeira de rodinhas do computador como se fosse um andador e abri a porta. Na velocidade das tartarugas. Ufa!
- Diga lá, minha santa! Estarei enganada ou a senhora só se “alembra” de mim na hora do desespero?
- Luzinete, há pessoas que são tão marcantes que, por mais que se queira, é impossível esquecê-las. São como tatuagens na alma. São pessoas especiais, tais como as sandálias havaianas que não soltam as tiras e nem perdem as cores (uma grande mentira!!!). Já jantou?
- Não se avexe! Fique quieta e deixe que me acerto na cozinha. Trepe as pernas, dondoca! Posso fazer um virado. Com ovos e boa vontade, minha preta, a gente se vira no virado, né?
- Né, Luzinete. Vamos botar os assuntos em dia.
- Dona Leila, a senhora já teve piolho?
- Na infância, com certeza, tive. Não consigo lembrar, mas devo ter sido apinhada deles. Suor, calor e cabelos mal lavados... Cabeça suja é o habitat natural dos pestinhas, não?
- Mana velha, pelas misericórdias, peguei uma piolhada do defunto meu primo. Venho lutando, lutando e não dou cabo neles. Dizem que piolho de defunto resiste até que, quem pegou, abotoe o paletó. Já ouviu falar nisso?
- Não. Nunca ouvi falar. O que os cientistas dizem é que há solução para eles: caseira e medicamentosa. Há pessoas que usam vinagre e mel de abelha. Os bichinhos sentem o azedo do vinagre, correm para o mel e nele ficam colados. Você tentou algum? Nas farmácias tem o Neocid, um pozinho dentro de uma lata e com um buraquinho. A gente aperta a lata e o pozinho cai no couro cabeludo. É tiro e queda! Os gordinhos ficam embebedados e desmaiam no travesseiro. De manhã, ao acordar, você coloca os bebuns sobre a unha do dedo grandão e, com a do outra, “poca” eles. Faz um barulhinho lindo! Faça isso, criatura!
- Quero não. Minha mãe falou que só se mata piolho de defunto, em definitivo, se colocar o Pó de Girafa. A senhora conhece?
- Não. Girafa nem tem cabelo, criatura! Que conversa é essa de pó de girafa?
- Tudo bem. Vou achar, comprar e matar essa “pragaiada” de defunto que está querendo foder minha vida. É tudo inveja! Agora que meus cabelos estão crescendo... Vou devolver a praga, tenha fé! Vamos mudar de assunto?
Luzinete quis abordar assuntos de Brasília, iniciando sobre o homem que não sabe enfiar a minhoca no anzol. E eu, que nem sempre me imiscuo nos assuntos daquela parafernália indigesta, preferi que falássemos de outras amenidades. Meu pé doía a cântaros e minha alma chorava lágrimas de sangue! Quereria derreter meu baço? Nem morta!
Nisso, quando estávamos decidindo na “porrinha” o assunto a ser tratado, aparece na televisão uma matéria sobre um pastor evangélico-fazendeiro, supostamente acusado de ser ladrão, safado, explorador da fé e da burrice, catrepeiro e detentor de todos os adjetivos desqualificativos que se possa imaginar. Vi e ouvi a matéria. Logo descobri que se tratava de um sujo falando de um mal lavado. As moralidades dos donos das duas igrejas que se acusam, em nada, nadica de nada, diferem. É sabido que “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”, mas, no caso, são pessoas que, segundo dizem, enganam inocentes. Milhares de inocentes, diga-se! Milhares e milhares de incautos e cegos que fazem da fé suas muletas. Desnorteados e aflitos que entregam suas vidas, almas e bens nas mãos de dirigentes de ministérios inidôneos e já bem conhecidos por suas obras mirabolantes com o dinheiro alheio.
- Luzinete, esse assunto também não é legal. Prefiro piolhos de defuntos a vermes de bandidos vivos. Muda o canal, vai!
- Pronto, a dama de lilás resolveu aloprar. Vamos logo jantar. Virado bom, que desce redondo, é virado quente. Fritei um pouco de bacon, desfiei a sobra da carne de carneiro, tasquei cebola, cebolinha e coentro, mexi no jeito, acrescentei caroços de feijão, umas duas colheradas de arroz, um colherão de manteiga, quatro ovos e, depois de dar uma rebolada em tudo, tasquei farinha e queijo ralado. Tá bom?
- Quantas pessoas vão jantar? Essa panelada dá pra dez pessoas.
- O que sobrar, creia, não irá para o lixo. Vai ser o almoço de amanhã. Meu virado tem prazo largo! Amanhã a gente coloca azeitona e ervilha. Quer mais?
Luzinete, enquanto falava e jantava, coçava a cabeça. Entre um garfo e outro, os anopluras de seis pernas causavam comichão e ela, instintivamente, metia as unhas na pensante infestada, “cavucando” sem parar o couro cabeludo. Aquilo sacudiu meus nervos. Veio-me à mente um defuntinho que vi na infância, no primeiro contato que tive com a morte. Tadeu Jr., o filho do Tenente Tadeu, lascado de vermes e piolhos, se transformou numa imagem escabrosa e que trago gravada de forma indelével. Bem fazia minha avó em obrigar todos os netos a, semestralmente, ingerir uma talagada de Tiro Seguro e, como complemento, um vidro de óleo de fígado de bacalhau – a famosíssima Emulsão de Scott. O ruim é bom, dizia ela. Nenhum de nós morreu e teve lombrigas saindo pelos ouvidos, bocas e narinas. A mulher do sargento era burra demais e, ainda que morasse na cidade, nem um licorzinho de cacau Xavier deu para o Tadeuzinho. Que tristeza! Tadeuzinho morto e os bichos vivos perambulando sobre suas vestes claras e inocentes.
Por gostar de Luzinete, de verdade, jamais pensaria vê-la repetindo a estória de Tadeuzinho. Para despistar e não ser agressiva. Perguntei:
- Luzinete, você fez o Papa Nicolau e a mamografia este ano? Se não fez, trate de fazer, visse? Amanhã de manhã, sem falta, vou ligar para a Drogaria São Paulo em busca do Pó de Girafa, ok? Você só vai para casa depois de acabar com os piolhos do defunto.
Se não acharmos o Pó de Girafa, vai ser com Neocid, DDT dos soldados da malária ou com Detefon. Vai ser com sabonete de Escabiol, pente fino, vinagre, mel de abelha e tudo o que estiver à nossa disposição. Em casa ou na farmácia, visse? Não vai sobrar pedra sobre pedra e nem piolho sobre piolho. As lêndeas não vão mais parir. Acabaremos com a fertilidade delas numa sessão de extermínio à minha moda. Em uma semana, se não houver uma solução, cortaremos teu cabelo. E tenho dito! Vai confiar em mim?
- Primeiro vamos achar o Pó de Girafa, legal?
Assim prometi, assim fiz. O homem da Drogaria São Paulo, quando falei no Pó de Girafa, deu a maior risada na minha cara.
- Senhora, se esse remédio existiu, foi em l830. A senhora está certa disso? Em que ano a senhora nasceu?
- Vá se lascar e pare de rir! O Pó de Girafa existe! Você é muito novo ou muito babaca. Deixe! Vou procurar noutras farmácias e drogarias, seu besta! Seu babacão! Vou passar um e-mail para uma amiga e contemporânea, para saber do Pó de Girafa. Bye, moleque!
- Mil desculpas, senhora.
No domingo, dia 18, o entregador da Farmácia Arpoador chegou com uma lata de Neocid, uma emulsão para piolhos, um pente fino e um condicionador para cabelos secos e rebeldes. Eu e Luzinete, sentadas na área de serviço, iniciamos a operação cata piolhos e fura-bolos. Tudo como mandava o figurino das antigas. A sessão durou hora e meia de relógio. No final de tudo, também como mandava o figurino de mamãe, entrelacei fios de linha de costurar no pente fino. Esse era o procedimento adequado para a fase de retirada das lêndeas. Elas saíam aos montes... Credo
Agradecer Luzinete pelos bons serviços prestados, pela companhia e pelo virado, não era mais que a minha obrigação. Sou uma tartaruga cristã! Piolho não dá em postes, ora pois!
Hoje, 23 de março, quando escrevo, Luzinete já se foi. Saiu daqui com cabelos limpos e sedosos. Sem lêndeas e sem piolhos. Cheia de graça, diga-se! Espero que não haja recaída. De minha parte, embora tudo tenha sido feito com cuidado, estou alerta para qualquer sinal de coceira nos meus sedosos. Até agora...
Depois ficar quebrando a cabeça, salvo engano, lembrei que, há muito tempo, e bote tempo, existia um pesticida de nome Orval ou Torval, que tinha uma girafa na embalagem.
Enquanto isso, sem ficar ligada em Brasília e seus desencantos administrativos, vou assistir o deslanchar da briga entre os pastores acusados de ladroagem. Haja Prinachol!
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