quarta-feira, 25 de abril de 2012

OS CORVOS E OS HERÓIS - Leila Jalul


Na quinta-feira, dia 19 deste, reuni uns poucos amigos no meu apartamento. Uma rabada no tucupi fumegava num panelão de quarenta litros. O cheiro invadia corredores e os outros apartamentos.

Tem quem não goste do aroma, mas... Exploda-se!

Alguém há de perguntar: mas como, se na Bahia não tem jambu, não tem tucupi? Na Bahia tem tudo, baby!

A mudinha que trouxe do Acre deu crias que florescem o ano todo. Primeiro plantei no quintal de casa e tirei novas mudas. Agora, que vivo em apartamento, passei mudas para uma agricultora que vive num assentamento dos sem terra, a Dona Lorena, e tenho jambu na cuia grande.

O tucupi, eu mesma preparo. Vou à farinheira, recolho a preciosidade, retiro a goma e faço meu carnaval de tacacá, pato e rabada na hora que bem entendo ou desejo. Velho também tem desejos, gosto de repetir.

Até a chicorinha, que aqui o povo chama de coentro do Maranhão, mandei plantar. A murupi - rainha, princesa e primeira dama das pimentas - eu tenho em casa numa enorme jardineira, na bancada do meu quarto e que não deixo ninguém olhar, para não botar quebranto. Serei besta?

Na sala, tomando um caldinho no copo, estavam dois amigos advogados gays que, muito em breve, realizarão a festa do tão sonhado casamento. Também estavam um médico chileno e sua esposa e filho, estes paraenses.

Além deles, completando a tropa, três coleguinhas da imprensa e mais um biólogo por eles convidado, que mora em Aracaju City.

Depois da rabada e do creme de graviola, hora de jogar conversa no tablado.

Primeiro, serelepe, baixa na tenda o Jacques Wagner. Por ser autoridade máxima, meus amigos foram com calma. Falaram primeiro os do contra. O médico chileno, por desconhecimento da política baiana e brasileira, manteve-se afastado do debate. É de bom tom! Estrangeiro tem que ficar mudo. Quando o assunto é política, sim!

Falou-se muito, principalmente sobre estradas e problemas na saúde. Em determinado momento - estava eu na cozinha - alguém falou que o prócer baiano derruba dois litros de uísque por dia. Pronto! Foi a deixa para que os admiradores petistas, com veemência, partissem para a defesa.

Uma defesa bonita, diga-se! Jugular de petista emocionado pula mais forte que a dos oposicionistas.

Um dos advogados, que conhece bem e que privou da amizade de Jacques, negou a derrubada dos litros de uisque e calou as bocas contrárias, com uma simples batida de martelo:

- “Entre o povo do ACM e o de Jacques Wagner, ponham a mão nas consciências e decidam quem está fazendo a melhor administração”.

A emoção calorosa deu lugar ao silêncio. Contra fatos não há argumentos.

Mais uma rodada de cerveja e entram na roda os prefeitos do sul do Estado. Eu e o pobre do biólogo de Aracaju, por pouco ou nada sabermos quem são os tais reis da municipalidade, ficamos calados. Mas sem deixarmos de prestar atenção, até para aprendermos mais sobre a política baiana.

Embora, de minha parte pelo menos, prefira ficar sem aprender, não deixei de dar pitacos sobre o que significou para a Bahia o velho cacique Antônio Carlos Magalhães.

O relato de uma médica, que trabalha em três cidades vizinhas, foi o que mais evidenciou que o fenômeno político ACM não é um fenômeno qualquer: algumas pessoas ainda o classificam como uma espécie de pai - o pai da pobreza. Ou como um Deus - o Deus da pobreza. E sentem saudades... Muitas! E parecem órfãos. E são!

Sempre ouvi falar do amor dos baianos pelo velho político. Não sabia que era tanto. Do que foi contado pela médica, uma senhorinha por ela atendida, de mais de oitenta anos, tem, entre as imagens dos seus santos de devoção, uma enorme fotografia do falecido senador. Em momentos de aflição, a ele recorre e pede a cura de um câncer no estômago. E recusa a médica e a fazer um tratamento...

Outro comensal da honorável rabada no tucupi, não sei precisar quem, falou sobre fé e sobre a necessidade das pessoas em eleger heróis e salvadores da pátria e que, da veneração a caírem na cegueira crônica, é um salto pequeno.

Foi nessa altura da conversa, por fim, que o biólogo de Aracaju usou da palavra e citou Chico Mendes, o herói amazônico. Não sei precisar se ele sabia que eu era do Acre e que conhecia o Chico. Creio que não. É bom ser desconhecida! Muito bom! É ótimo! É maravilhoso!

É meu costume dizer que bebo, mas, por precaução, não me entrego ao vício doloroso da “imbriaguêis”. Também costumo dizer que minha cultura etílica não me permite excessos. Quando o Chico Mendes apareceu na tenda, por curiosidade, fiquei apenas alisando latas, quieta e na escuta.

O biólogo, beirando aí os 66, 67 anos, não mais, desceu o cacete no mito Chico Mendes e na imagem falsa do herói fabricado por políticos, pela igreja católica, o bispo, pelos antropólogos, em especial uma antropóloga, pela imprensa e pelos artistas globais, referindo-se, especificamente, à carimbada figurinha de Lucélia Santos.

Falou mais: falou na carona que a senadora Marina Silva pegou na alma de Chico Mendes para chegar ao poder e aos píncaros da glória e da fama.

Menos, menos, pensei eu. Só pensei. Nada falei. Também acho que, como dizem aqui, - “quem não sabe rezar, bem direitinho, finda xingando Deus”.

Falou sobre uma aluna de escola pública que, recentemente, foi aprovada para ingressar na Universidade de Harvard.

Que - continuou disparando o biólogo, - a tecla batida por Marina de ter se alfabetizado aos 17 anos, nada diz, uma vez que há gente se alfabetizando aos 80, com mais inteligência e menor sorte que ela, até por falta de carona na alma de alguém.

Porém, - matraqueou o homem de Aracaju – “Chico Mendes tem sido mais que benevolente com Marina. Talvez ela mereça essa benevolência. Marina não é corvo e nem bandida, apesar de verde”.

“Chico Mendes foi um lutador. Um bravo! Apenas isso!” - disse, com a voz firme de quem não é gago.

O cara demonstrava conhecer palmo por palmo da floresta virgem. Pareceu ter tomado cachaça com tira-gosto de rodelas de caju com o Chico Mendes (nem sei se o Chico bebia) nos botequins de Xapuri.

O certo é que, de verdade, ele conheceu muito bem e trabalhou por mais de quinze anos na Amazônia. Contou que, apesar de radicado em Belém, o chão do Acre foi muito pisado por ele.

Mas como? Nunca vi o tal biólogo, nem mais gordo, nem mais magro! Minha casa sempre foi abrigo e ponto de encontro de pesquisadores, professores, artistas, prostitutos (as), boêmios e desocupados, em geral.

Gente do INPA, do Emílio Goeldi, da WWF, da FAO, do Canadá, do Peru, da Groenlândia e da China, a todos conheci. Menos o biólogo de Aracaju City. Seria um fantasma?

Deixei o homem-biólogo falar. O assunto estava interessante e eu precisava ouvir, sem interrupções. É muito difícil não interromper, pedir um aparte, zinho, zinho, que seja. A velhice me fez paciente. Continuei ouvindo.

Disse o homem sobre particularidades do seringueiro e de sua esposa, hoje viúva de Chico e que eu, mesmo tendo morado no Acre por mais de sessenta anos, nunca ouvi falar. Que Chico havia sido expulso do PT e não recebeu apoio da cúpula do partido. Que, que, que...

E disse mais, muito mais. E ouvi o mais e o muito mais, como se fosse um poste. Calada! Não puxei bandeira com estrela vermelha, não cantei leros para o sol a brilhar soberano sobre as matas que o vêm com amor, não exibi RG e nem batistério. E tive razões para tal. Se eu falasse, na certa, o biólogo calaria.
- “A inteligência está em quem sabe ouvir” – mamãe dizia.

E não foi só a velha quem disse tal e sensata verdade. É preciso saber ouvir. E cantar!

No calor da conversa, plateia atenta, o biólogo de Aracaju, com seu estonteante tirocínio, decretou:

“Há verdes do Acre que são chegados ao banditismo”.


- “O único besta desta história, morreu, e, por sua ingenuidade e beleza cidadã, deve estar envergonhado. Por tudo e por todos, está envergonhado”...

- “Os verdes do Acre são corvos. Corvos que comem a carne apodrecida que nem mais existe. Chico era um bom sujeito. Das melhores figuras humanas que já conheci. Era um bravo! Lutou pela sobrevivência e ponto final”.

- “Seu único pecado foi engatar uma quinta por conta de inescrupulosos que, de má-fé, cutucaram com vara curta a onça que nele apenas despertava e, por consequência, aceleraram a sua morte”.

- “Chico Mendes não morreu por conta da sanha dos fazendeiros. Morreu, isso sim, pelas incitações dos aliados famintos. Nenhum se pôs à sua frente ou lhe serviu de escudo. Em bom português, foi boi de piranha”.

- “Quem sabia de espera da caça, quem conhecia a floresta tal qual Chico conhecia, tinha consciência do dia da caça e do dia do caçador. Homens puros e feras simples sabem de si. O que Chico não conhecia, não sabia e nem deduzia, era do instinto das humanas feras. Estas encaminharam Chico ao patíbulo. Sem dó e sem piedade”.

Não redargui. Em momento algum protestei. Nem com força e nem de leve. A velhice me fez respeitosa. Com pessoas e opiniões. Com opiniões, principalmente.

Não é só o biólogo de Aracaju City que assim pensa. Mesmo no Acre, há quem pense o mesmo, principalmente sobre a fome da viúva Ilzamar por $$. No Blog do Altino Machado, li, um comentarista até se atreveu a indicar uma terapia ocupacional para a distinta senhora. Viúva não é profissão, deve assim imaginar.

Quando todos se foram, após a rapa do tacho da panela de rabada no tucupi, com saudades, lembrei de Bertold Brecht:

- “Triste do povo que precisa de heróis”.

Triste, ainda mais, acrescento eu, é ter governos que não respeitam os direitos adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e as sentenças transitadas em julgado. Triste é não respeitar quem merece respeito. Triste, verdadeiramente triste, é ser marginal da história e dos tempos. Mais e mais triste, tristíssimo, até, é viver na solidão!

E fui mais além: pensei nos corvos citados pelo biólogo e filósofo. Visualizei imagens do que é sermos por eles farejados e comidos depois de mortos. E até vivos! Eles estraçalham memórias. Corroem ideais. São insaciáveis os corvos. Sejam verdes, sejam pretos. São bandidos e vorazes. Serão sempre corvos. Covardes e espúrios.

Do Chico Mendes, guardo a lembrança que guardo. Não como herói. Preservo a que o imortalizou na defesa da floresta.

Do biólogo de Aracaju City, a quem nunca vi, nem mais gordo e nem mais magro, feliz ou infelizmente, nada sei. Nem quero saber.
Se o que pensa é certo, só sabe ele!

Nota: as falas do biólogo, embora entre aspas, expressam, de forma geral, o seu pensamento. Dizem a síntese do seu ponto de vista. Não há fidelidade total. Ao pé da letra, não. Quem me conhece, entretanto, sabe do tamanho da minha memória.
Mal terminada a deliciosa rabada no tucupi, corri para a máquina e escrevi esta crônica. Retirei alguns ranços e adociquei os termos mais pesados.




*Crônica originalmente publicada no site Lima Coelho.

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