Dona Joaninha Santelmo era elétrica e fogueteira. Andava a passos miudinhos e acelerados, fazendo o barulho insuportável do toc-toc dos tamancos de pau pisando firme no chão. Quando estava braba, enfezada com alguém ou diante de alguma injustiça, o pisado ganhava força e velocidade.
De sua boca as palavras saíam e soavam com o vigor que queria nelas imprimir. A força da verdade. Fosse nua, fosse crua: a verdade, somente a verdade.
Mulher simples, de mente acutíssima e crítica, às vezes até podia parecer grosseira. Ao contrário: era apenas justa nas avaliações sobre pessoas e situações. Da idade real fazia segredo que, nem depois de morta – dizia - revelaria a ninguém. Sabia-se, no entanto, que andou tendo vida marital com o filho de um oficial combatente da guerra do Paraguai e que, lá pelo início do século passado, tinha nascido em Montevidéu e foi batizada como Juanita Perez Salvatierra. A quem se importasse e atrevesse em saber de suas primaveras, respondia de chofre: - sou mais velha que o mundo e mais nova que você, seu merda! Virava as costas e fechava-se em copas.
A pensão vitalícia deixada pelo marido dispensava-a do trabalho fora de casa. Ainda assim, de bom gosto, cuidava de crianças pequenas, para que os pais pudessem trabalhar sem maiores preocupações. Na minúscula creche, em contrapartida, ganhava um bom dinheiro que, também de bom grado, salvava as amigas em estado de necessidade. Sabia das mazelas de cada uma. Enquanto viveu, sabe-se, nenhuma delas e seus filhos menores dormiram de barrigas vazias. Uma benfeitora, pois.
A casa onde viveu tinha cores. No jardim de latas de óleo de cozinha, penduradas por toda a parte externa da pequena casa de madeira, eram plantados pés de “bocas-de-leão”, “boa noite”, “dólares em penca”, “boninas” e “onze horas”. Samambaias silvestres brotavam em cascas de cocos. Matinhos insignificantes e sem catalogação, desde que tivessem um verdinho de tonalidade diferente da do gramado, eram apreciados, integravam a paisagem e revelavam o gosto e a boa mão da plantadeira Joaninha Santelmo.
Apesar disso, de todo esse amor pelas cores e flores, não suportava mulheres com roupas justas, por demais coloridas e as de rostos melecados por rouges e batons vermelhos. Visse uma assim na rua, já dizia: - “não parece uma macaca amarrada pela barriga? Só parece!”
De sua inseparável amiga, a brilhante e luzidia Rizoleta Artemísia Cruz, a tudo perdoava. – “Rizô é doida! Tem mente fraca. Tadinha dela! Desse batom que usa e que a deixa com um bico de brasa, desses vestidos escandalosos que lhe cobrem o esqueleto, só Deus e eu sabemos as razões de tanta extravagância!”
No dia em que Rizô foi enterrada, entre pesares e indignações, Joaninha Santelmo, já na saída do cemitério, chamou para uma conversinha o padre Anselmo Tavares e Marilourdes Cruz, a única filha da amiga falecida, vinda de Brasília para as exéquias.
Em sua casinha, com cara de pedra e tamancos batendo forte, foi logo falando:
- Padre Anselmo e Marilourdes, esta será a primeira e a última vez que falarei sobre a doença e a morte de Rizoleta. Chamei o senhor, padre Anselmo, para que sirva de testemunha do relato que farei sobre os últimos anos de vida da minha boa amiga.
Dirigindo-se à Marilourdes, com voz dez vezes mais dura e cortante, disse:
- Menina, você sabe que é a responsável pela prematura morte de sua mãe. Estou afirmando; não perguntando. Ela não soube conviver com as dores e o desprezo que você e o engomadinho do seu marido lhe causaram. Quando você nasceu, disso deve saber muito bem, Rizô virou-se em dez para tê-la como princesa. Seu pai não quis saber de você e nem dela. Não me pergunte quem ele é. Não revelaria, ainda que soubesse. Seu pai e sua mãe foram a Rizô. O seu melhor colégio, a melhor roupa, saúde, carinho e tudo, tudo, o que você teve e usufruiu nesta vida, deveu-se aos esforços e ao amor que ela lhe dedicava.
Com certa tristeza, continuou a “espinafrar” a ingrata filha:
- Quando você ficou mocinha, dela partiram as orientações para a escolha de um bom caminho. Quando adulta, dela, também, partiu o apoio irrestrito em todas as suas decisões. Sua felicidade, garota, era a dela. Estou certa disso. Estou afirmando; não perguntando.
Preciso avivar sua memória de lombriga. Desejo que você reveja o quanto foi ingrata com sua mãe e reconheça que, quando os médicos lhe desenganaram por conta de anemia profunda, foi pelas mãos de Rizô que você foi salva. As transfusões de sangue que recebeu custaram caro. Seu sangue, menina, é classificado como egoísta. Sendo AB+, é receptora universal e doadora restrita. Lembro-me, como se fosse hoje, a luta que empreendeu para arrebanhar doadores e que estes comparecessem no dia e hora marcados. Até transfusão direta, lembra? Na luta pelo seu restabelecimento, esgotada, Rizoleta emagreceu mais de vinte quilos. Estou afirmando; não perguntando. Você há de lembrar. Claro que lembra!
Marilourdes, até então, não havia derramado uma única lágrima. Nem quando o caixão desceu à sepultura. Talvez não desejasse engelhar a pele e desnortear as aplicações de botox que lhe preenchia as bochechas. A velha Joaninha, exasperada, quando viu a moça tentando derramar água dos olhos, com descaso, pediu que se poupasse das lágrimas. E prosseguiu na lição de moral.
- Suas lágrimas, neste momento, são dispensáveis. Vou lhe contar uma particularidade de sua mãe. Ela teve três mortes, em três momentos que lhe destruíram o coração fraquejado: quando você e o escroto do seu marido não a receberam bem no apartamento funcional da Asa Sul, em Brasília; quando do nascimento de sua primeira filha, também primeira neta de Rizô, sem que ela fosse sequer convidada para conhecê-la e, por fim, quando lhe foi negado um tratamento para a profunda depressão que lhe acometeu e causou a morte. Em três momentos você, tal qual Simão Pedro renegou Jesus, igualmente procedeu com Rizoleta. Não foi um bom proceder, estou ciente disso. Não estou perguntando; estou afirmando.
“Sim, se morre de tristeza, Marilourdes. Sim, se morre! Se pensa que você e seu marido são melhores que Rizoleta, tenha fé, não são e nem jamais serão. Onde Rizoleta botou a bunda, os dois, jamais, terão o direito de colocar as caras. A bondade e a alegria dela são privilégios de poucos. Só dos que amam, entenda. Volte agora para o seu marido e para sua filha. Viva a vida cretina e falsa do entorno do poder. Faça bom uso da morte de sua mãe. Estando ela morta, seu passado também estará morto. Já não existirá a vergonha que ela lhe deveria causar. Viva, se puder! Viva tudo! Viva, se possível, carregando a cruz do remorso.
Não posso afirmar, pois não sou Deus, que o fato de Rizoleta ter morrido em plena Sexta-feira da Paixão do Senhor, seja apenas uma grande coincidência ou se a vida quer lhe ensinar uma lição. Hoje, em plena data que se comemora o Sábado de Aleluia, é um bom dia para refletir sobre o gesto traidor de Judas Iscariotes. Há o momento certo do arrependimento, pense nisso. Não há pecador que, arrependido, não mereça perdão”.
Padre Anselmo Tavares, como testemunha que se preza, ouviu babando e calado até o fim.
Não fez julgamentos. Não foi solicitado para julgar, menos para perdoar. Fez boca de siri e semblante de múmia até o final do relato da velha amiga de Rizô. A única reação que esboçou foi quando viu, ajoelhada aos pés de Dona Joaninha Santelmo, Marilourdes implorar:
- Mãe, me perdoa? Deus, me perdoa?
Joaninha Santelmo, sem nada dizer, sem mais nada a tratar, dispensou os dois. Queria estar sozinha, cuidando de outras vidas coloridas. As plantinhas das latas de óleo estavam ressecadas e murchas. A morte da flor Rizoleta deixou-as em segundo plano.
E saiu ligeirinha, batendo fortemente as tamancas... Durante a rega, absorta, ficou a pensar no mistério da ressurreição.
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DOM HÉLDER CÂMARA
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