LEILA JLAUL
A mesa estava arrumadinha. Mesa para dois.
Há quinze anos, ainda que nunca juntos ou de namoro real, o ritual era o mesmo. No dia dos namorados, Helenita, com expressão de felicidade, aguardava a chegada do seu “namorado” de meninice.
Nunca houve troca de presentes comprados em lojas. Ele chegava com um raminho de flores roubadas da pracinha ou de algum jardim dos arredores, trocavam um abraço demorado e um beijo na testa ou na bochecha. Jantavam juntos. Às vezes, nem isso. Comiam uma fatia de bolo, ou saboreavam uma tigela de pudim, ou, ainda, se em dia muito quente, sorviam taças de sorvete caseiro.
Nunca, em nenhum momento, durante aqueles quinze anos, sequer passou pela cabeça de Helenita e Juarez que a noite terminasse entre lençóis. Nem juras de amor eterno. Nada disso! Não ia além de um encontro rápido e às claras. Tanto assim que Auxiliadora, esposa de Juarez, sabia de tudo e também privava da amizade de Helenita. Até almoçavam ou jantavam juntas. Nada de mais concreto existia naqueles eventos afetivos entre seu marido e Helenita que a fizesse supor estar vivendo um triângulo amoroso.
O dia dos Namorados, por cláusula tácita, era comemorado primeiro com Helenita e depois com Auxiliadora. Sem quaisquer rusgas ou marcas de ciúmes.
Helenita, quando no despertar do amor, aceitou uns beijinhos escondidos do seu vizinho Juarez. Fugiam dos pais, tomavam banho de rio e sorriam ao sabor das águas e dos ventos. Abrigavam-se em cabaninhas montadas por ele e se esquentavam juntinhos com o calor dos corpos.
Embora alvoroçado e louco para fazer um algo mais que nunca lhe fora permitido, jogava-se na água. Nem sem penetração, como propunha o amigo. Helenita não aceitava intimidades. Somente abraços, beijos no rosto e mais abraços. Então, com o corpo em brasas, Juarez jogava-se na água. Somente assim dava um esfriamento nos desejos.
Um dia, depois de muito ardor contido e um pulo no rio a corredeira levou Juarez e empurrou o rapazola para um poço com redemoinhos. Águas do paredão onde o rio se faz mais profundo e traiçoeiro. Águas que puxam pra baixo. Poço onde dorme o demônio. Águas do temível salão.
Estava a se afogar o jovem em desespero. Helenita, num ato de bravura, tirou o menino dos braços do hediondo. Deitou-o no barranco e, no soprar em sua boca trouxe-o de volta à vida. E se tornaram “namorados” pra sempre, sem nunca terem sido. Helenita amava meninas. Somente as meninas lhe faziam subir o sangue no sentir dos delicados toques.
E o tempo passou. Sem mais banhos no rio. Sem nada de amor carnal. Sublimidades e suavidades... Era tudo o que Helenita desejava.
A mesa continuava arrumadinha. Mesa para dois. E Juarez demorava. Muito!
Helenita, num misto de tristeza e saudade, chorou. Sentiu-se abandonada, embora soubesse que a companheira Ângela logo chegaria. Cansada, desarrumou a mesa e vestiu a camisola da noite dos namorados. Juarez não chegou . E...jamais chegaria. Teria apenas os afagos da amiga. Afagos que não supririam a ausência de seu amor de infância.
Por telefone, agoniada e até certo ponto com aspereza, Auxiliadora quis notícias de onde se havia escondido o marido. Quis saber se ele ainda estava com Helenita. Eram passadas muitas horas além do prometido para que estivessem num jantar já programado.
Não, ele ali não estava. Nem deveria.
No outro dia, ainda madrugada, foi encontrado morto, esbagaçado por atropelamento com autoria nunca identificada. Ao seu lado, um raminho de jasmins e um cartão para Helenita, sua eterna “namorada”. Helenita, sua salvadora do redemoinho da casa do demônio, nas profundezas do salão do rio.
Helenita e sua companheira Ângela estiveram juntas com Auxiliadora, numa demonstração de total amizade e apoio incondicionais.
Helenita, com o mesmo carinho de sempre, ainda mantém a tradição e, no dia dos namorados, curte arrumar uma mesa especial. Uma mesa não para dois e sim para três. Virou hábito entre as amigas, após a missa de aniversário de morte de Juarez, jantarem juntas. É que um amor morreu e a amizade seguiu em frente.
* Publicado originalmente no Site Lima Coelho.
Leila, querida continuas soturna, porém funda como os rodamoinhos.
ResponderExcluirBeijos.
Carlos Braga
Que lindo Leila (adorei "ve-la" contista). Êta mão abençoada a sua, menina. Acerta na medida - drama e poesia.
ResponderExcluirbeijos