segunda-feira, 2 de julho de 2012

BRINCANDO COM BARBIES

LEILA JALUL


Há dias que João Marcelo, cinco anos incompletos, andava pelos cantos da casa, dizendo não a tudo que lhe fosse oferecido. Nem o bolo de cenoura com cobertura de calda de achocolatado atraía a sua atenção. Nem o desenho animado do canal da TV a cabo e nem o petisco de requeijão cremoso. Desprezou, inclusive, as barras de chocolate pelas quais choramingava e batia os pés na seção de doces do supermercado. Estava cabisbaixo e inapetente de todo.

Preocupada, a mãe Diana não mais sabia o que fazer. Perguntado se estava com alguma dor, apenas balançava a cabeça apontando para a garganta.

Hora de acionar a pediatra. Exames laboratoriais e pesquisa na região das amígdalas, laringe e faringe não apontaram nenhuma anormalidade. Nenhuma infecção. Nada que pudesse gerar alardes. Do ponto de vista clínico estava normal. Ainda assim a “dor” continuava e o seu comportamento permaneceu inalterado.

Arredio, moleza no corpo e horas passadas no quarto em penumbra quase total, levou a mãe a procurar outro profissional para uma melhor inspeção.

Novos exames, alguns até assustadores para uma criança de menos de cinco anos, também foram realizados. Chegou-se a realizar uma tomografia e o diagnóstico descartou todos os temores da mãe e do médico.

E lá se foi João Marcelo para o divã. A dor na garganta passou para o peito. Assim foi revelado na primeira sessão com a profissional que, com todas as técnicas e jeitos, tentou penetrar na alma da pequena criatura.

Na sala da brinquedoteca, entre carrinhos, trens, quebra-cabeças, cartões, canetas coloridas e peças para montagens de casas, castelos e outros tipos de construção que, manipulados pela criança, poderiam revelar os motivos dos nós na garganta e opressão no peito do pequeno João Marcelo. Depois de hora de relógio, dando canseira à mãe, João Marcelo não esboçou qualquer reação. Parecia não se emocionar com nada que lhe fora apresentado e que mexeria com a emoção de qualquer outro menino da mesma idade.

Seis sessões seguidas e nenhum relatório conclusivo do abatimento. A psicóloga não arrancava nem palavras e nem a tristeza armazenada no semblante do pequeno. Até que um dia, brilhou a luz. Reação inesperada para a mãe; compreensão do busiles da questão para a profissional. Tudo esclarecido da forma mais simples possível e na própria sala da brinquedoteca.

Disposto a explorar outros brinquedos que não os disponibilizados pela psicóloga, João Marcelo avistou uma casa de bonecas, e nela, timidamente, entrou e de lá saiu com três bonecas Barbies nas mãos: Barbie noiva, Barbie havaiana e Barbie banhista, esta última com um chamativo biquíni “cavadão”.

Pronto! Questão esclarecida, embora não resolvida. Os caminhos, porém, estavam abertos. O fator preponderante que perturbava o menino tinha a ver com bonecas. Bonecas Barbies, principalmente. Os olhos dele brilharam enquanto esteve com três delas nas mãos.

Como primeira orientação da psicóloga, de imediato, a mãe deveria ir conversar com a professora de João Marcelo. A professora, por sua vez, deveria fazer perguntas aos coleguinhas para descobrir se algum deles queria falar sobre o amigo que havia tempo estava “dodoizinho” e não frequentava a escola.

Foto: Revista Crescer
Nada foi mais espontâneo que o depoimento de Matheus, também de cinco anos, que, falando a linguagem própria, mais ou menos assim declarou:

- Tia, os meninos não gostam do João Marcelo porque ele disse que adora a Barbie. Depois que ele falou isso, nenhum menino quis mais nem chegar perto dele. Lucas disse que o pai dele não queria que ele brincasse com o João porque “bichice” pega e quem ficasse com ele ia virar “boiola”. Também o Mário empurrou o João Marcelo e chamou ele de “bicha”.

Assim sabido, a conversa entre a psicóloga e a aflita mãe foi elucidativa, a ponto de serem ditas algumas verdades que ela não estava preparada para ouvir. Disse-lhe a psicóloga que, muito mais que João Marcelo, ela, sim, necessitava de apoio profissional.

Isso não é um conto, adianto. Antes fosse uma ficção. Fictícios, só os nomes.

O caso me foi relatado há pouco mais de dois meses. Não vou abordar o problema do bullying, nem citar tratados de questões genéticas, menos ainda falar da crueldade das crianças, principalmente quando essa virulência não é congênita. As crianças não nascem com ela correndo nas veias. É resultado de defeitos adquiridos. A crueldade está nos pais, passa para os filhos, circula livremente nas escolas, se estende aos amigos de bairro e faz morada na própria entidade familiar vista de forma mais alargada (tios, primos, etc.), até ferir de morte a mente de uma criança como João Marcelo, que só tem cinco anos e não pode ser responsabilizado pelas misérias e ignorâncias humanas. E quantos Joões, Josés e Marcelinhos existem por este mundo vil?

Culturas mais pobres que a nossa ignoram esse abominável tipo de preconceito. Até os índios, tidos como marginais, tratam melhor os seus curumins. A sociedade que se diz culta, a que tem acesso às mídias, burramente insiste em não atentar para questões que bem já deveriam estar assimiladas. O machismo que se quer manter ainda vivo é o maior causador dos sofrimentos a que estão submetidas mulheres e crianças.

A literatura sobre o assunto é farta. Na internet é vastíssima e de fácil leitura. E ainda melhor: é “de grátis”. Basta acessar e lá estão artigos e mais artigos sobre meninos que brincam com bonecas, o que se insiste em julgar uma perversão.

Tratar a homossexualidade como doença é coisa tão hedionda quanto o nazismo. Imaginar que a preferência por determinado tipo de brinquedo demarca e define a sexualidade de uma criança é crime sem perdão.

Menino que, em tenra idade, tem veneração pela boneca de belo corpo, belo rosto, belas roupas, cultuada em várias partes do mundo e que atende pelo nome de Barbie, ao contrário do que imaginam os pais, pode ser uma demonstração de gosto pela beleza da mulher e não uma pura vontade de ser uma delas ou semelhante a elas. Os mistérios e as belezas do mundo lúdico de uma criança não devem e nem podem ser medidos de forma tão grotesca e errônea.

Conheço mães de seis, sete, oito filhos, de origem humilíssima, que não se desencantam ou se assombram com o fato de um moleque de 10, 12 anos que, na brincadeira com irmãos e irmãs, se traveste com roupas e sapatos de salto tirados do seu guarda-roupas. Também conheço gente que ostenta anel de doutor e que se apavora e se torna agressivo quando seu casal de crianças brinca com os brinquedos um do outro, como se bolas e bonecas fossem definidoras de sexualidade, ou seja, bola é coisa de macho e boneca é coisa de meninas e de promessas de “boiolas”.

Uma particularidade é bem evidente: meninas que gostam de bola e até se arriscam a jogar futebol, de um modo geral não são vistas como candidatas a serem lésbicas. Não necessariamente serão “sapatonas”. A intolerância recai, infeliz e quase que exclusivamente, sobre meninos que gostam da Barbie ou de outra boneca qualquer, seja a Moranguinho, seja a Suzy e assemelhadas.

Não cabe mais viver nessa escuridão. Um mínimo de amor não será gasto em vão para entender que a sexualidade é direito personalíssimo, sagrado e intrasferível. Desde a infância, inclusive, quando a criança já tiver mais percepção do seu corpo e dos seus desejos. É responsabilidade do pai e da mãe situar filhas e filhos no mundo e lutar pelos direitos deles à felicidade, ainda que desafiando os padrões de gênero, caminho nada fácil numa sociedade em que o gênero é limitadamente binário: masculino e feminino.

O caso do João Marcelo foi decidido de forma simplista e criminosa. Ele foi transferido para outro estabelecimento e levou consigo o gosto pela boneca Barbie, seja ela noiva, havaiana ou banhista de biquíni “cavadão”. Deve ter angariado novos coleguinhas e, com toda certeza do mundo, foi terminantemente proibido a, na escola, ou fora dela, jamais dizer do encanto que sente por ela. No momento ele foi sumariamente trancafiado num armário, quem sabe homofóbico! Não se pode afirmar, no entanto, é se os apertos em sua garganta e em seu peito desaparecerão. Também não se pode afirmar se ele sairá do armário e nem como.

Dirá o tempo. No momento ele tem apenas cinco anos. É um anjo. E pouco sabe de sexo. E de maldade...

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Nota da autora:
Expresso minha admiração e agradeço as orientações que me foram enviadas pela Dra. Fátima Oliveira para a elaboração deste artigo.

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