Leila Jalul
Em 93, de forma absolutamente inexplicável, quebrei uma perna em oito lugares. Até hoje ainda creio num empurrão vindo de algum invisível despeitado. Cansada de tanto amassar a minha cama, resolvi ir para Boca do Acre (AM) e amassar a cama dos outros.
E lá me fui com minhas muletas e dois amigos a tiracolo, para qualquer eventualidade. A última vez que lá estive havia sido em 53, quando, à bordo do Navio Benjamim, fui para o internato em Sena Madureira. Situações bem diferentes. Na primeira, fui na marra. Na última, fui por gosto, apesar de estar sem perna.
Boca do Acre me surpreendeu. Da cidade velha, pouco restava. O que vi foi uma estrutura urbana interessante construída na parte alta, chamada de Pequiá.
Logo avisto no porto um aviãozinho dentro d'água, novinho em folha. Fui logo perguntando o que estava fazendo ali aquele troço que pensei nem existisse mais. Um recepcionista do hotel me disse que era da Rede Globo e que estava transportando uma moçada para o Céu do Mapiá. Era a febre desse tempo.
E foi assim que decidi, de pronto, não ficar naquele hotel onde entrava e saía gente barulhenta, sem contar a multidão que se aglomerava na porta para ver o fulano de tal que trabalhava na novela das seis, na das sete e na das oito. Um bafafá!
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Pronto. Decidido. Vou para o São Paulo, que é terra firme. Vou para a casa do meu colega França. Contratei um estivador parrudo, que subia e descia com botijas de gás, para me transportar barranco abaixo. E assim fui para o segundo distrito de Boca do Acre. O apoio logístico que recebi do pessoal da balsa da Petrobrás e da turma da catraia foi perfeito. Nada a reclamar.
Fui recebida com uma cervejada. No trajeto, caras curiosas apareciam. Todos sabiam que o França ia hospedar uma velha de perna quebrada. Me acomodei. França armou uma rede na varanda. Tomei mais cerveja. Nunca tomei tanta cerveja de graça na minha vida. E foi dessa rede que avistei Coração.
Coração, 85 nos costados, andando sem auxílio de nada, também já sabendo da novidade, parou para cumprimentar a hóspede do seu vizinho.
Sabe aquela paixão à primeira vista? Coisa de pele? Fomos, segundo afirmam, feitas uma para a outra. Meus fins de tarde estavam garantidos. Conversar com Coração.
– Coração, me diga, nega, o que que você aprontou nessa vida? Conta tudo!
– Leilinha (lá se vem a intimidade), eu fiz de tudo. Até meus trinta e poucos, fui parteira. Depois cansei. Fui ser embarcadiça.
– Me conta! Em navio?
– Primeiro em navio. À medida que o tempo foi passando, a tonelagem também diminuía. Passei por batelões, baleeiras, por todo tipo de tripulação!
– Cozinhando?
– Sim. Sim.
– Todo tempo na cozinha?
– Sim. Peraí, era assim: eu servia o café da manhã e eu era a merenda. Fazia o almoço e eu era a sobremesa. Fazia o jantar e eu era a ceia. Depois de tudo a gente ia dançar um pouco, que ninguém vive só de trabalho!
– Era assim mesmo?
De repente, Coração olha para o Purus e me diz, com cara de saudade:
– Tá vendo esse rio? Se eu tivesse que construir uma ponte juntando os meninos que peguei e os homens que me pegaram, dava pra construir uma ponte que ia e outra que vinha.
– Coração, que coisa!
E rimos juntas. E tomamos mais cerveja juntas. E outras tardes juntas, eu e minha Coração, a quem nunca perguntei o nome. Se ela se chamasse Matilde, não teria a menor graça.
Já morreu, mas deixou uma lembrança que não me é possível arrancar. Toda vez que vejo uma água que corre, me ocorre perguntar de qual tamanho seria minha ponte. Já tive a resposta: nem do tamanho da ponte Rio-Niterói, nem do tamanho da pinguela do Igarapé Canela Fina.
* A crônica também encontra-se no site Lima Coelho.
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DOM HÉLDER CÂMARA
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