segunda-feira, 15 de outubro de 2012

SE A LIBERDADE É AZUL, O PERDÃO É VERMELHO

Leila Jalul


O coração de Adalberto, o Nonô, demonstrou os primeiros sinais de desturbinação. Numa tardezinha de maio, uma primeira fisgadinha, "leviana", como ele a classificou. Quase um nada. Coisica, tipo vento preso que desejava sair.

Não demorou muito, outras sensações estranhas marcaram presença. Sempre nos finais de tarde ou início das manhãs.

Imortal, escondeu os fatos da mulher e das filhas.

Dona Guidola sabia que algo diferente estava acontecendo. E cadê coragem de falar? Sabia das pedradas que poderiam chover em sua direção. Até mesmo para os amigos mais íntimos Nonô escondia a vontade constante de apertar com as mãos o peito. Eles poderiam abrir o bico e... vai que poderiam encarar isso como "viadagem e maricotice".

Ainda um homem novo, desde que chegou do Crato, mostrou-se diferente da irmandade. Tinha uma soberba que mais o aproximava do príncipe Idi Amin Dada, aquele que muitos conheceram ou tiveram notícias. O corpanzil de quase dois metros de altura, bigode espesso e olhos azuis cintilantes, nem de longe lembravam o biótipo de um cearense comum, daqueles que costumavam migrar em fuga da secura.

Diferente da prole, tipo meio brutão, não demorou a ser visto, notado e paparicado. E logo viria a se tornar um bom delegadão nomeado pelas autoridades da época. Em terra de muro baixo quem não tem visão é bem olhado. De delegado para diretor de sistema penitenciário foi um pulo de porteira baixa. Nessa função, escondidos onde estivessem, brotaram os verdadeiros sentimentos de Nonô pela humanidade pobre que, por uma ou outra razão, escorregava nos "paragráfos" da lei.

Na lida diária da casa de reclusão somente eram bem tratados os homicidas por amor. Estes eram poupados de trabalhos forçados e passavam à condição de "amigos do diretor". Um inocente atirador de baladeira que atingia os tetos de zinco quente, um ladrão de bicicleta, um caçador de galinha alheia, estes, sim, eram a ralé miúda e mais perigosa do crime. Fosse por Nonô, o dia desses miseráveis só começaria após receberem vinte chicotadas nos lombos. O animal tinha ódio de ladrões, principalmente os que invadiam as casas das poderosas famílias do condado federal. Um gatuninho que roubasse um pão, independente do tamanho da fome, também era incluído no rol dos hediondos. Nonô era Nonô e sua palavra era a última, seus métodos os únicos corretos e se danasse quem quisesse se danar!

Com todos esses atributos e o assentimento da cúpula, defecou regras e mais regras, dentre as quais o trabalho forçado. Não havia garis e a limpeza de barrancas, fossas, ruas, sarjetas, prédios públicos e quintais privados, tudo virou tarefa de condenados. Até aí nenhum destaque, nenhuma relevância. O pior veio depois. O pior vem agora: nos locais distantes, tipo estradas de rodagem e varadouros, os detentos tinham que fazer de vestes umas simples fraldas de morim ralo, presas com enormes alfinetes de segurança. Ficava aquela macharada de foice numa mão, cambito na outra, num vai e vem incessante de corte de capim tiririca e todo o tipo de mato de capoeira. Dizem que, logo iniciada a faina, ainda descansados, todo o trabalho desses homens tinha uma sincronia tão perfeita que, distasse um quilômetro, ou mais, era possível ouvir o som das lâminas e, a depender da "forteza" do sol batendo no aço, era como se riscas de fogo ascendessem aos céus como relâmpagos invertidos que incandeavam e cegavam. Dizem também que, vez por outra, os acessórios básicos e que simbolizam a vergonha masculina escapuliam pelas abas laterais das finas fraldas, como se quisessem respirar um pouco de ar fresco. Daí a notícia carece de exatidão. Não confirmo nada. Dizem..., e, dizem, não sou eu.

Homens novos, medianos e idosos, em fila indiana, deixavam a cidade limpa, os quintais do nobres ciscados e varridos, as privadas creolinadas e a bosta pútreda dos doutores esvaziadas das fossas. Um primor. Dentre esses trabalhadores, dois chamavam atenção: o velho Zé Licurgo e o seu menino Tenório, o mais novo dos onze irmãos e o caçula da tropa engradada.

Aconteceu que Zé Licurgo era daquelas criaturas de mão boa para plantar. Uma espécie de Midas da jardinagem. Eu mesma posso comprovar que, num canteiro de onze horas, aquela planta rasteirinha que todo mundo conhece, as flores tinham quase (eu disse quase) o tamanho de uma papoula dobrada. Onze horas gigantes. A fama de Zé Licurgo correu a aldeia e logo foi chamado para tratar do jardim do promotor Josias Saint'Cair, bem no centro da cidade. Herniado, inguinalmente falando, Zé pediu autorização ao doutor para ser ajudado nas tarefas de abaixa e levanta por seu menino Tenorinho, no que foi atendido. E foi aí que a desgraça que tinha anunciado antes aconteceu de verdade: embora só ultrapassassem o portão de entrada e saída do imóvel após fiscalização da mulher do promotor que lhes mandava mostrar as marmitas, as ferramentas e os bolsos, numa certa manhã foram esperados pela força policial, algemados e presos sem maiores explicações. O Mido Ocean Star do dono da casa havia sumido e ninguém mais culpado que não o jardineiro e seu menino.

Não houve queixa, inquérito, processo formalizado, julgamento, pedido de vistas, nada. Prisão e pronto. Reclusão e mais nada para o pai e para o filho. E foi assim que Zé Licurgo e Tenorinho foram vestir fraldas junto com os condenados da penal agrícola. Curtiram bons anos e boas amarguras por lá. Sem qualquer culpa, segundo ficou comprovado depois. A mulher do próprio Saint'Clair presenteou o "cebola" ao seu menino amante Jaime Arthur da Fonsêca.

Contou-me Zé Licurgo que, nas tardes de sábado, domingos e feriados, a grande distração da platéia do crime era assistir a um desfile de homens pelados. Ganhava o prêmio aquele que tivesse os bagos mais bronzeados e tostados pelo sol. Também havia concurso para medição dos que estavam com maior arriamento. Coisa dantesca! Enquanto isso os assassinos das puladeiras de cerca andavam na maciota com o Nonô. Até faziam churrasco na casa de outras mulheres e cabulavam a volta para as grades. Eram os amigos do "homem", e daí?

A vida tem termo. Ainda bem. Para os bons, para os nem tanto e para os ruins. A maldade também tem termo. E assim, depois do último verão esquentado que pai e filho passaram na prisão, já libertos por inocência atestada, é que Nonô subiu no telhado para não mais descer. O governo já havia sido trocado umas três vezes e o grande mentecapto estava quase no esquecimento. Não era mais paparicado por ninguém da cúpula. Não mais exibia o garbo do Idi Amin Dada. Dona Guidola e as filhas gêmeas já haviam partido para Souza, na Paraíba. Esse é outro fato jamais bem desvendado: foram por vontade ou deportadas? Encurtando o caminho, Nonô estava só e morreu pior ainda. No seu velório não apareceu nenhum dos seus amigos que mataram as traideiras, nenhuma autoridade da época. Apenas Zé Licurgo passou a noite inteira de vigília. Foi tudo muito solitário, segundo seu relato. Chamou todos os seus filhos e, com a esposa, procurou cuidar daquele que um dia foi seu algoz. Tenorinho se mostrava um tanto revoltado, porém, em obediência ao pai, não só ajudou a carregar o caixão como ainda deu uma mãozinha no plantio das onze horas sobre a terra ainda fofa. Em sete dias, como de costume, voltaram lá e todas estavam floridas e robustas.

De tudo isso, deduzi que a liberdade é azul e o perdão é vermelho, com nome de flor de onze horas do tamanho de papoulas dobradas. Perdão é florescimento. De quem tem bom coração. É, sim!


* Texto publicado no site Lima Coelho, e faz parte do livro "Das cobras, meu veneno" (2010), de Leila Jalul.

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