Tamara de Lempick - Amethyst |
É impossível imaginarmos uma sociedade humana que não faça ou que não ouça música. Simplesmente porque tal sociedade, a partir de certo momento da nossa História, nunca existiu. A música é um dos pilares da nossa humanidade. Um dos elementos sem os quais não seríamos o que somos como espécie. De uma forma particular, a música está para a nossa humanidade assim como estão letras e matemáticas; ciência e artes.
Mas, por que isso acontece? Por que a música tem tanta importância em nossas vidas? Por que precisamos tanto ouvir música em tantos momentos do nosso dia a dia, como em bares, carros, desfiles, elevadores, TVs, quartéis, escolas etc.?
Não existe uma resposta que contemple a totalidade da pergunta. Desta, e de todas as perguntas. Mas para cada uma das perguntas existem inúmeras respostas que, com bons ventos, podem nos levar às cercanias das proximidades da ante proto pré-resposta... Espero que a reposta que segue seja uma dessas, movida e conduzida pelos sopros dos bons ventos.
Femme - 1867 |
Todos os dias, quando nos acordamos, uma das primeiras coisas que fazemos é a de pousar nossos olhos em um espelho.
Vemo-nos e, de cara, naturalmente, tratamos de nos transformar. Escovando os dentes, penteando os cabelos, experimentando roupas, estamos sempre diante do espelho acompanhando e comandando as nossas pequenas transformações cotidianas.
Nas ruas, estamos permanentemente em contato conosco e nosso look através dos retrovisores dos carros, das vitrines das lojas, vidros dos prédios, estojos de maquiagem etc.
O curioso é que, sempre que nos vemos, à semelhança daquela primeira mirada que nos damos quando nos acordamos, temos certa tendência - quase que impulso - a nos retocar, a mudar algo em nós, a fazer algo que nos melhore a aparência. Assim, quando nos vemos, e podemos, fazemos pequenas coisas do tipo: corrigir a posição da gravata, retocar a maquiagem, guardar o anel, ajustar o cinto, corrigir a postura, abotoar a camisa.
É que, quando nos vemos refletidos, quase sempre percebemos que precisamos fazer ajustes em nossa aparência para que estejamos mais parecidos e em harmonia com quem somos, com o que achamos que somos ou com quem ou quê gostaríamos de ser.
E como mudamos tanto em nossas vidas sendo sempre as mesmas pessoas, (vide quando tínhamos cinco anos, onze anos e agora), necessitamos estar sempre afirmando, confirmando e reafirmando nossas identidades, entre outras coisas, nos vendo em fotos, vídeos, espelhos etc.
Escher - Metamorfose |
ESPELHO SONORO
À nossa semelhança, as sociedades humanas também têm identidades e fisionomias próprias. Qualquer grupo humano, qualquer cidade, estado ou país que criemos, logo ganha personalidade distinta, traços particulares, características próprias. Individuação.
É por isso que quando ouvimos um tango, logo identificamos: “essa música é daquele lugar”. O Mesmo acontece quando ouvimos música country, taquirari, tarantela ou samba. Cada um desses ritmos contém traços próprios, aspectos particulares da alma da gente que os criou.
Escher - Violeiros |
Acho que, entre outros tantos motivos, é por isso que escutamos tanta música. A música é um espelho sonoro onde, ouvindo, miramos o nosso espírito. Nele encontramos detalhes de nossa alma que de outra forma não perceberíamos com naturalidade.
Quando ouvimos música, penetramos na aparência externa do nosso eu coletivo, da mesma forma que penetramos na aparência externa de nosso eu quando nos vemos refletidos no espelho.
E da mesma forma que temos certo impulso para retocar nossas aparências quando nos vemos, quando ouvimos música temos certo impulso para retocar aspectos do nosso espírito. Assim é que, ao ouvir música, ora ficamos mais alegres, ora ficamos mais tímidos; ora ficamos mais tristes, ora mais espertos; ora ficamos mais sentidos, ora confirmamos ou maquiamos nossas indiferenças.
Na sonoridade do espelho, vemos nossas almas e buscamos harmonizá-las com o que sentimos.
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Um caipira do Rio São Francisco, assim falou sobre a História: “A nossa História é uma coisa interessante, a gente se alembra, se alembra... de repente se esquece. Daí, um dia, a gente não tá nem naquele sentido, de repente se alembra...”
Se alembrando e se esquecendo; reesquecendo e se alembrando de nós - nos espelhos de vidro e em miragens sonoras - vamos compondo nossas vidas vivendo nossas histórias. As histórias das transformações cotidianas, pequeninas, quase imperceptíveis, como um leve retocar de maquiagem ou ligeira alteração de humor, mas que povoam nossos dia-a-dias de gestos e sentimentos sem os quais não seríamos mais que estátuas, pedras sem movimento.
*Luiz Felipe Jardim leciona História.
Parabéns ao blog, por ser a janela pela qual circulam os sempre bons ventos soprados/escritos pelo Professor Luiz Felipe Jardim.
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