Leila Jalul
Site Lima Coelho
Por dois dias
seguidos, tanta era a excitação, que Nicomedes Alexandrino Só de Barros não
pregou as pestanas. Ou sua vida mudaria, ou... Melhor nem pensar.
Naquela sexta-feira,
impreterivelmente, teria a resposta sobre se ganharia a viagem para o Canadá.
Ou não.
Jadir Faria Lima, seu
concorrente, por ser mais jovem, até poderia ter mais chances. Não quis deixar,
entretanto, de considerar que as empresas privadas, de um modo geral, também
premiam a experiência.
Levantou cedo, fez a
barba no capricho e tomou um banho detalhado. Nenhuma impureza, nenhum fio de
cabelo fora do lugar haveria de atrapalhar seu destino. O blazer cinza, sem
qualquer amassado inoportuno, estava junto com as demais peças novas que iriam
compor o impecável figurino. Perfumou-se, olhou-se pela derradeira vez no
grande espelho, calçou o cromo alemão tinindo de novo e desceu as escadas
pisando macio. Não queria ser visto e nem atrapalhado por quem quer que fosse.
Qual nada!
Casado há vinte e
três anos com Eunice Rosa Só de Barros, pai de duas meninas de dezenove e
dezessete anos, respectivamente, Juliana e Jeanine, e de um menino de oito, o
Juninho, com idade mental de quatro, nunca deixou que nada a eles faltasse,
inclusive carinho. Eunice, a esposa, sem aparente razão havia se tornado uma
pessoa estúpida e insaciavelmente consumista. Abrisse o bico sobre a possível
promoção, já no outro dia, nem que a mula tossisse, um colar de pérolas estaria
pendurado em seu pescoço ou um carro zerado estacionaria na garagem da casa. Os
filhos, não! Não teve maiores problemas com nenhum deles, à exceção de Juninho,
que mereceu cuidados especiais desde a mais tenra idade.
E foi Juninho quem
abordou o pai, bem quando este saía para a importante reunião que decidiria seu
futuro na empresa.
- Pai, o Tuco está
tristinho. Leva ele para o veterinário, leva? Manda dar uma tosa e um banho, tá
legal? Acho que ele precisa tomar injeção, tá bom?
Nicomedes ainda
pensou em dizer não. Mas, diante daquela ternura, embrulhou o Tuco numa toalha
de mesa e se foi. A clínica ficava no caminho, afinal. Teria tempo suficiente
para estar na reunião em tempo mais que hábil.
Faltando três minutos
para a hora marcada, passou novamente no banheiro, corrigiu uma mecha branca de
cabelo que teimava aparecer e deu aquela bochechada com o antisséptico bucal
preferido. Mais um jato de perfume e, à mesa de reunião, aguardou a abertura
dos trabalhos e o veredito do diretor.
Ganhou Jadir. Os seis
meses de especialização em Toronto e a consequente e bem aquinhoada promoção
seriam dele. Não há espaço para sentimentalismo em multinacionais. As empresas
que aplicam o método japonês de administrar não gostam de fofocas e nem de
lágrimas. Venceu Jadir por sua fluência perfeita na língua inglesa. E ponto
final. Um aperto de mão entre os concorrentes selou o reconhecimento e a
amizade. E foi encerrada a reunião para que todos retornassem aos afazeres
normais.
Dizer que Nicomedes
ficou feliz e sem uma pontinha de inveja, fora de dúvidas, seria ajudar a
engrossar a fila dos hipócritas. Um homem consciente de suas limitações de
mérito, sem discussão, vale por dois. E Nicomedes sabia que seu domínio no
inglês era bom. Na parte técnica, comparado ao de Jadir, era um pouco menor.
Ainda assim...
De volta às metas do
dia, conferiu seu correio eletrônico. Da esposa Eunice, por baixo, uns trinta
torpedos no aparelho celular e mais outro tanto de e-mails solicitavam a
Nicomedes que, urgentemente, mandasse três quilos de costelas de porco para o
almoço. Costelas magras, diziam as solicitações. Num único retorno, sem grandes
explicações, o derrotado Nicomedes avisou que não poderia estar em casa para o
almoço. Pelo fato de não ter comunicado nada do seu dia e das ambições de
projeção frustradas, não deu maiores esclarecimentos àquela que dele exigia
além do razoável.
Antes de encerrado o
almoço, como prêmio de consolação, ganhou uma quinzena de descanso numa praia
do litoral norte de São Paulo, com direito à companhia da esposa e filhos.
Agradeceu de coração, voltou para a empresa e continuou a rotina do dia.
Ao sair do trabalho,
sem revoltas, sentiu-se pesado. Sabia que não haveria mais tempo e oportunidades
para o que esperava fossem suas realizações pessoais. Não tinha mais idade para
sonhos. E então, acabrunhado, pensou no amigo Aristeu Holanda para uma conversa
de final de tarde. O amigo saberia ouvi-lo. Marcaram um drink num bar da região
da Avenida Paulista, levaram um papo agradável e só então, por volta das 10 da
noite, rumou para casa.
Ainda na porta, antes
mesmo de transpô-la, encontrou Juninho choroso.
- Pai, cadê o Tuco?
- Meu filho, o Tuco
teve que ficar na clínica. O Dr. Marinho disse que ele está com verminose e só
pode dispensá-lo amanhã. Vá dormir, está bem? Amanhã o Tuco voltará.
Nicomedes
arrependeu-se da mentira. Como pôde esquecer o Tuco? Eunice, a esposa, lhe
virou a cara, como se fosse um criminoso sem direito a perdão. Nada foi pior
quando esta lhe contou que a filha Juliana, cheia de rebeldia, havia se
trancado no quarto com o namorado que conhecera há três meses e com quem se
dizia casada. A mais nova, Jeanine, também trancada em seu quarto, felizmente,
apenas estudava com algumas amigas para o vestibular de medicina. A casa estava
em processo de forte terremoto.
De temperamento calmo
e avesso a gritos, Nicomedes pegou o jornal da manhã, do qual não lera sequer
as manchetes e, quando pensou-se em paz, escutou mais uns berros da esposa.
Eunice falava e falava, batendo nas mesmas teclas, numa repetição cansativa,
principalmente para aquele dia.
- Nicomedes, você não
passa de um imprestável! Você não pensa na família. Quer tudo para si. Um
imprestável! Cadê as costelas de porco? Cadê o Tuco do seu filho? Infeliz de
quem vive com você! De nada valeu o meu esforço em lhe domesticar. Burro velho
e empacado! Desgraça de vida!
- Eunice, deixa que
te conte o meu dia. Não foi meu melhor dia. Nunca vi as horas se multiplicarem
tanto! Espera!
- Espero nada! Antes
de querer justificar o injustificável, vá ao quarto de Juliana e ponha aquele
vagabundo pra correr. Juliana é sua filha, esqueceu?
- Eunice, estamos no
século XXI. Juliana é maior, pode ter vida sexual ativa e não devemos nos envergonhar
disso. Me incomoda o fato de ser tão rebelde e respondona. No mais... Pense:
não é melhor ela estar aqui conosco e na sombra da nossa casa? Sente-se aqui!
Hoje...
- Hoje, exatamente
hoje,você foi o mais inútil dos homens! Esquecer o Tuco? Juninho passou o dia
triste e choroso! Que merda de pai você é? Onde estão as costelas de porco? E
se eu não tivesse providenciado outra comida? Ficaríamos com fome?
- Desisto, Eunice!
- Desista! Os fracos
desistem. Sempre!
Nicomedes, rendido,
desistiu de contar seus anseios de afirmação. Desistiu de dizer que queria ser
melhor e garantir o futuro de todos.. Que desejava banhar-se de estima e
crescer na empresa. Que nada! Calado seria melhor. Calado queria dormir e, de
tão arrebentado das emoções do dia que não mais queria acabar, pensou sumir. Ou
até morrer. Nunca um dia foi tão grande!
Já no quarto, com o
ambiente mais acalmado, quis usar do poder de sedução para dissolver o clima.
Aproximou-se de Eunice, puxou-a pela cintura, enlaçou-a com os braços e tentou
beijá-la. Bruscamente, quase aos pontapés, foi rejeitado e expulso do ambiente.
Não mais reconhecia a Eunice de bons modos com quem estava prestes a completar
o vigésimo quarto ano de vida em comum. Teria sido culpa dele aquela
transformação? O fato que querer o melhor para si e para a família teria
despertado nela a ansiedade pelo consumo e a obsessão pelo dinheiro? Teria
deixado faltar amor no relacionamento?
Sem respostas,
recusando-se a ser mais humilhado, deitou-se no sofá. De cansado, de tão
magoado, já de madrugadaconseguiu dormir e sonhar.
Sonhou um sonho
agoniado. Viu-se perambulando pelas ruas de São Paulo, buscando uma casa para
morar.
Nenhum sonho é mais
sintomático e revelador de desejos de mudança. Nem precisa ser sábio para
compreender que uma casa é sinônimo de refúgio, abrigo, tranquilidade e
segurança.
A primeira tentativa
de busca, sem pestanejos, logo deixou para trás. A casa estava arruinada. Era
de madeira suja, telhado vazado e com a pintura desbotada. A segunda, grande
demais, mostrava os esgotos aparentes e fétidos. A terceira, ainda em
construção, chegou a ver, no sonho,soltar-se uma viga sobre os operários,
deixando-os gravemente feridos. A quarta, de aspecto simples, foi a que mais
lhe agradou. Sentiu-se seguro e confortável. Seria a escolhida. Ao final do
sonho, sem maiores detalhes e completamente fora de contexto, viu Eleonora, uma
amiga de longas datas.
Nicomedes acordou
refeito. Desde que casara com Eunice, por questões morais, nunca foi tendente a
ter amantes ou encontros ocasionais. Assim quisesse, era seu pensar, separaria
da esposa e procuraria outros braços para repousar.
De volta ao batente,
esquecido do sonho, cumpriu suas obrigações de empregado. Aproveitou o horário
de almoço, buscou o Tuco no veterinário e comprou as tais costelas pedidas pela
esposa no dia anterior. Missão cumprida!
Na parte da tarde,
sem hesitação, ligou para Eleonora e marcou encontro.
De noite, num bar da
Avenida Consolação, a conversa foi alegre. E várias vezes repetida em outras
ocasiões, até quando o namoro começou.
O passeio no litoral
norte foi bem aproveitado com ela. Daí pra frente outros encontros mais
frequentes. Veio o divórcio e, hoje, mais de dois anos passados, estão juntos,
numa casa simples e sem cobranças de joias, carros do ano e costelas magras
para o almoço. Nicomedes achou-se, enfim, reconhecido e forte para tocar uma
vida a dois. Sem domesticações, gritos, chicotes e explorações.
Apenas um toque de
saudade lhe atormenta o coração. Não há um dia, um único dia, por mais breve
que este seja, que o filho Juninho e o cachorro Tuco lhe saiam da cabeça. Os
encontros autorizados, no entanto, são plenos de alegria e paz.