sábado, 25 de maio de 2013

Série HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU

SAGA DA FAMÍLIA ALENCAR ARARIPE
Doces Lembranças
 
 
Regina Amélia D’Alencar Lino
Quando criança, ouvia  algumas vezes, no seio de minha família, a história que meu avô Ovídio - a quem eu chamava carinhosamente de Vovoinho -, aos nove anos de idade, após  levar uma surra de seu pai, fugira  de casa. Depois de algum tempo, minha tia Rita  confirmou que a fuga ocorreu na verdade, quando ele estava com aproximadamente 12 anos.

Durante minha infância e adolescência, constantemente, pensava em meu avô como alguém corajoso e decidido. Depois que cresci, inúmeras vezes, perguntei-me por quais motivos uma criança criada em um ambiente intelectualmente promissor, com família tradicionalmente constituída e com segurança econômica, abandonaria a casa de seus pais para lançar-se ao mundo e viver como gente grande, em tão difícil aventura.  Talvez a resposta estivesse  na força de sua personalidade, no tempero de seu DNA refletido em grande parte da família, mais acentuado nas mulheres, o que não chega a ofuscar  o temperamento dos homens.

Consta, nas histórias contadas, que em um navio que fazia a rota entre Fortaleza e o estado do Amazonas , meu vovoinho embarcara como  empregado, desempenhando  todo tipo de serviço, desde a limpeza do porão, convés, banheiros e tudo mais que fosse necessário, que estivesse ao seu alcance.

Quem o protegia naquele lugar? Era a pergunta que me intrigava e, às vezes, por ser ainda tão menina, sentia vontade de chorar ao pensar que o avô que eu tanto amava e que tanto nos protegia, pelo destino, pelas circunstâncias, interrompera precocemente sua infância - a fase melhor da vida de uma criança - para trabalhar.

A sua descendência é originária  dos primeiros Alencar vindos  de Portugal  para a Bahia por volta de 1650-1680, entre eles  Leonel, Alexandre e João Francisco.

Leonel Alencar Rego, patriarca da família Alencar era o bisavô de Barbara de Alencar, heroína republicana,  primeira mulher presa política do Brasil, por participar da Revolução Pernambucana (1817) e da Confederação do Equador (1824).

Bárbara de Alencar nasceu no sertão de Pernambuco, em 11 de fevereiro de 1760, em sua adolescência mudou-se com a família para a vila do Crato, no Ceará.  Ali, casou-se, em 1782,  com o capitão português José Gonçalves dos Santos, comerciante de tecidos, e naquela região do Cariri viveu a maior parte de sua vida.

Bárbara teve três filhos homens e uma filha: Tristão Gonçalves Pereira de Alencar, Carlos José dos Santos, que tornou-se padre, José Martiniano de Alencar e Joaquina Maria.

José Martiniano era o pai do escritor José de Alencar   e Tristão, um de seus irmãos, era  bisavô de meu avô materno, Ovídio de Alencar Araripe.

Informações colhidas do livro “Barbara e a Saga da Heroína” esclarecem que o vocábulo  Araripe  fora  acrescentado ao sobrenome Alencar, por iniciativa de Tristão Gonçalves de Alencar, segundo filho de Bárbara, de quem herdou o espírito político e o temperamento nacionalista revolucionário. Consta, ainda, que Tristão, assim procedera,  por conta da forte admiração que mantinha pela Chapada do Araripe, considerada penhor de fertilidade do Cariri.

Em assim sendo, ressalta-se que todo Alencar, descendente do ramo de Tristão,  é Araripe, donde se concluí que todo Araripe é Alencar, embora nem todo Alencar seja Araripe.

Em 1824, Tristão de Alencar Araripe tornou-se Presidente da Província do Ceará e, por ter participado das lutas pela Confederação do Equador, foi sacrificado, juntamente com um irmão, o padre Carlos José dos Santos Pereira de Alencar por ser solidário ao movimento, assim como outros familiares. A mãe de ambos, Bárbara, escapou do martírio, ao conseguir fugir para Exu, em Pernambuco  e, daí, protegida por seu irmão capitão Luis Pereira de Alencar, retirou-se para Alecrim, no Piauí, onde faleceu aos 72 anos, na Fazenda Touro.

Portanto, Bárbara de Alencar, a heroína, e  José de Alencar, o escritor, são, para nosso orgulho,  parentes próximos de meu avô Ovídio e não tão longe está o parentesco com minha mãe Ovília de Alencar Lino - Nini, casada com José Ruy da Silveira Lino,e consequentemente de mim e de meus irmãos - Beth, Ovídio e Ruy.

 Oriundos da miscigenação de  portugueses,  cearenses e pernambucanos, além do vinculo  indígena/caboclo amazônico, acrescido  pela influência racial  africana  advinda do Maranhão  para o seio  de  minha avó materna, foi no  princípio  da  década de 1940, que meus avôs chegaram  ao Acre. 

Ao tornar-se adulto, meu avô continuava a trabalhar pelos rios amazônicos - Amazonas, Madeira, Negro, Solimões e Purus -, e, num dia de elevado calor, quando o navio ancorou às margens do rio Madeira, no município amazonense  de Borba,  ele   conhecera, em uma pensão simples,  auxiliando  a madrinha a servir  refeições,  aquela que viria a ser a minha vovóinha  Amélia Lins, mais tarde Araripe.


Juntos, ainda no estado do Amazonas, deram início a sua prole, formada pelos  filhos Tarsila – (chamada de Pequenina), Edson (Edinho), Amédio, Ovília (Nini, minha mãe), Domitila (Donita), Alencarina (Lenca), Maria Rita, ficando para nascer em Rio Branco, Maria Amélia (Bebelia), além das filhas falecidas quando crianças Edna (ao vir à luz) e Amelinha  (aos oito meses de idade).

A razão da mudança da família para o Acre prendeu-se ao fato das  notícias que circulavam  a respeito da prosperidade econômica, que o então território federal oferecia. Dessa forma, em viagem em um navio gaiola regional, que durara  aproximadamente quarenta e cinco dias, com muitas crianças e outros parentes, minha avó Amélia desembarcou  em Rio Branco, para junto com meu avô, levar a efeito   uma nova vida que se apresentava, em todos os sentidos, desta vez distantes de suas raízes.

A viagem, ao que se sabe, transcorreu com algumas particularidades, como não podia deixar de ser, entre alegrias, preocupações, que requeriam cuidados a todo instante para que as crianças não caíssem n’água, ou  não sofressem quaisquer outros tipos de acidentes, além dos cuidados com as enfermidades a que eram acometidas, decorrentes das intempéries e ataques de insetos.

Meu avô, ao chegar ao ACRE, começou a trabalhar como comerciante de gêneros alimentícios e estivas em geral. Lembro-me, que em sua loja, a Casa Araripe, vendia-se quase de tudo: açúcar, biscoito, cordas, arroz, feijão, sabão em barra, latas de banha de porco, de manteiga Real, outros enlatados como Viandada, sardinha Coqueiro, azeite, além das pélas de borracha, que eram estocadas no espaçoso quintal da casa, as quais  exalavam  um odor forte e característico, compensado porém, pelo aroma de um pé de jasmim e por um frondoso e carregado pé de serigüela, cujo sabor dos frutos trago, para sempre, guardados na goela.


Pelo comércio e pela residência  dos meus avós passavam os mais diletos amigos: o Parente Amigo, avô do Terri e Romerito Aquino, o Rolinha, seu Waldomiro Moura, o Antão, o Quininho, que morava no quartel da Polícia Militar, mas as refeições eram ofertadas por minha avó, Chico Padeiro, seu Anastácio, seu Firmo, proprietário  do navio João Gonçalves, que fazia a rota Belém, Manaus e Rio Branco, e só dava o ar da graça  quando o rio Acre enchia. O apito de sua chegada, anunciava alegria, novidade, grande movimentação e um fervilhar de negócios .

Além da atividade comercial, meus avós adquiriram por compra uma grande extensão de terra e ali edificaram a Fazenda Araripe, modelo de propriedade, em que se dedicavam à criação de animais, cultivo de muitas frutas, legumes e verduras para consumo próprio, destacando-se à venda do leite das vacas.

Da Fazenda Araripe trago as melhores recordações. As crianças eram o centro das atenções. A organização e o cuidado com a fazenda eram exemplares. O zelo de minha avó Amélia com tudo que se relacionava a propriedade era, já naquela época, de causar admiração.

Além, das comidas saborosíssimas, como o carneiro preparado para o almoço aos domingos, a banana comprida frita na merenda, a tapioca e o pão de milho no café da manhã, além do copo de leite mungido, que éramos "obrigados" a beber  em companhia de meu avô, por volta das  seis horas da manhã nas férias e fins de semana; a galinha caipira no almoço; os banhos de açude; a convivência com os filhos e parentes  dos trabalhadores da fazenda; as noites em que brincávamos de manja sob o mais prateado luar; as fogueiras juninas que pulávamos para nos tornarmos comadres; o espanto com a cobra Sucuri, que moeu e engoliu um bezerro e deixou, à amostra, os chifres do novilho;  a casa da Liquinha, a farofa de ovo da casa da comadre Maria e do compadre Abdias, feita pela Sabá; a pescaria no açude do seu Canuto; a alegria da casa da Missinoca e do Zé Pereira; a amizade da Jusa, a caduquice com Franscisquinho, a presteza de seu Jaime; o Raimundo, o Dan, que subia no pau de sebo; as lendas da Mula sem Cabeça, do Curupira, do Saci Pererê; as longas cavalgadas em família. Tudo que posso chamar de felicidade e  de  fazer inveja aos personagens de Monteiro Lobato.

Os melhores dias eram todos, além daqueles em que nos reuníamos com os primos Lena e Manoel, os amigos, tias Lenca, Rita, Bebelia, Maria José e agregados, para conversar, cozinhar, brincar de barra, esconderijo, adivinhação e pique-pega subindo nas mangueiras.

Minha tia Rita cortava um cipó longo e forte e nos empurrava de um lado para outro do igarapé São Francisco. Era uma farra, quando  éramos Jane e Tarzan; tia Bebelia tocava violão, ensinava-me a fazer biscoitos para ofertarmos ao Papai Noel nas noites de Natal. Quando eu acordava no dia 25 de dezembro contava a todos os detalhes do meu “encontro” com o bom velhinho. Tia Lenca  e  Dr. Adib, médico ginecologista e obstetra, que à época estavam noivos, prometiam levar-me junto para a lua de mel e eu sonhava em lamber as paredes da lua.

No Acre  nossa família cresceu, agregada a tantas outras, que também podem nesse espaço contar suas trajetórias, pois a verdadeira e singular história do Acre foi construída pelo entrelaçamento dessa bela e corajosa  epopéia.

Certo dia, quando morava em São Luis (MA), inspirada no tanka - modelo poético japonês – manifestei meu amor à minha terra:
                                

            Doce Acre,
                As estrelas do teu céu brilhante,
                        E as alegrias que me deste
                              Guardo-as em meu peito
                                   Acalmando saudades.

 

 

* Regina Amélia D’Alencar Lino é socióloga e escritora acreana, natural de Rio Branco. Foi também vereadora e deputada federal, e vice-prefeita de Rio Branco – AC.

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