sexta-feira, 21 de junho de 2013

LAOCOONTE ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia

Isaac Melo 


É de Horácio a máxima ut pictura poesis, isto é, a poesia é como pintura. Afinal quem imita quem, o pintor ao poeta, ou, o poeta ao pintor? Quais as fronteiras de cada uma? Tal discussão se levanta sobretudo no que se refere a obras de artes que provêm de narrativas (prosa ou verso) antigas, seja grega ou romana. Em 1766, o crítico alemão Gotthold Ephraim Lessing, a quem Nietzsche se referiu como o mais honrado dos homens teóricos, publicou importante obra que tornou-se um marco referencial nesta discussão, sendo festejada, inclusive, por Goethe. Trata-se de “Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia”.

O MITO

Para compor seu trabalho, Lessing toma como base um conjunto de escultura grega representando Laocoonte e seus filhos. De acordo com a mitologia, Laocoonte era um sacerdote troiano de Apolo, tendo sido castigado por sua desobediência quando quis revelar aos troianos as artimanhas do cavalo. Quando da partida simulado dos gregos, durante um sacrifício ao deus do mar, Posídon, que ele realizava na praia junto com os seus dois filhos, os deuses enviaram duas cobras, Pórcia e Caribéia, sobre os três. Lessing discute no capítulo cinco o passo da Eneida de Virgílio que descreve esse evento. De acordo com o tradutor da obra em português, Seligmann-Silva, o grupo de mármore que representa Laocoonte com seus filhos, uma das esculturas mais famosas da antiguidade, data de cerca de 140 a. C. – isto é, da época da inflexão entre o declínio do mundo grego e o nascimento de Roma como potência européia. Em 1506 foi encontrada em Roma uma cópia romana dele de mármore (a partir do original de bronze) de autoria de três escultores de Rodes da era do reinado de Tibério (4-37 a. C.) que pode ser vista até hoje no Vaticano, onde ela foi abrigada. Uma idéia do original grego de bronze, embora sem o braço direito de Laocoonte, encontrado apenas em 1904, pode ser obtida a partir da observação do bronze do grupo Laocoonte de autoria de Primaticcio, de 1540 realizada em Fontainebleau. Os conhecimentos quanto a essa escultura eram ainda muito obscuros à época de Lessing, que desconhecia a existência de um original de bronze. Apenas a partir de importantes descobertas arqueológicas de 1957 em Sperlonga a arqueologia desvendou os mistérios que envolviam essa obra. (cf. nota 18, p.81)
A DISCUSSÃO

Em relação a Laocoonte, Lessing abre a discussão em torno da dor, isto é, até que ponto a dor pode ser expressa na obra de arte. Então ele faz uma citação de um outro crítico, Winckelmann, que aqui reproduzimos, ippis litteris:

“Assim como as profundezas do mar sempre permanecem calmas, por mais que a superfície se enfureça, do mesmo modo a expressão nas figuras do gregos mostra, em todas as paixões, uma alma grande e sedimentada.

Esta alma, apesar do sofrimento extremo, está exposta na face do Laocoonte e não apenas na face. A dor que se revela em todos os músculos e tendões do corpo e que nós sem observar a face a as outras partes, apenas no abdome dolorosamente retraído, quase que cremos estarmos nós mesmos a sentir; essa dor, eu dizia, exterioriza-se no entanto sem nenhuma fúria na face e em todo o posicionamento. Ele não brada nenhum grito terrível, como Virgílio canta do seu Laocoonte; a abertura da boca não o permite: trata-se muito mais de um gemido medroso e oprimido, como Sadolet o descreve. A dor do corpo e a grandeza da alma são distribuídas, e como que balanceadas, por toda a construção da figura com a mesma força. Laocoonte sofre, mas ele sofre como o Filoctetes de Sófocles: a sua miséria penetra até a nossa alma; mas nós desejaríamos poder suportar a miséria como esse grande homem.

A expressão de uma alma tão grande vai muito além da transformação da bela natureza. o artista deveria sentir em si mesmo a força do espírito que ele grava no seu mármore. A Grécia possuía artista e filósofo em uma pessoa, a mais do que um Metrodoros. A sabedoria estendia a mão para a arte e soprava na suas figuras mais do que almas ordinárias etc.” (1998, p.83)

O GRITO

Para Lessing, o grito, como o expresso no Laocoonte, é nada mais que a expressão natural da dor corporal. Por exemplo, na poesia de Homero, os guerreiros não raro
caem no chão aos gritos. Assim, por mais que Homero eleve os seus heróis acima da natureza humana, eles permanecem, no entanto, sempre fiéis a ela quando se trata das sensações de dor e de ofensa, quando se trata da exteriorização dessas sensações pelo grito ou pelas lágrimas, ou pelas invectivas. Segundo os seus atos trata-se de criaturas de tipo mais elevado; segundo os sentimentos, verdadeiros humanos. A dor, neste caso, não denota fraqueza, mas  uma característica plenamente humana.

O gritar não é apenas próprio dos homens fracos. Lessing comenta que já entre os gregos antigos, o gritar na sensação de dor corporal podia coexistir muito bem com uma grande alma. Mas não é esta a razão que leva o artista  a querer imitar e transpor esse grito para o mármore, até mesmo porque é o poeta, na visão de Lessing, o que melhor expressa tal grito na obra de arte.

Se, para os gregos antigos, a beleza era a suprema lei das artes plásticas, o grito, portanto, não pode ser também expressão da feiúra. O grito, então, é o grau supremo de afeto expresso nos traços faciais. E, para Lessing, nada é mais fácil à arte que expressar esses traços. Ele exemplifica com o escultor Timantes, que levava a expressão dos afetos até o ponto máximo, no qual a beleza e dignidade ainda deixavam-se ligar a ela. Aqui entra um ponto de extrema relevância na concepção de Lessing acerca do limite da obra de arte. Esta não deve se revelar plenamente, há que ter sempre um encobrimento, para que se possa operar a imaginação de quem a contempla. Assim o que Timantes não podia pintar ele deixava adivinhar. Em suma, para o autor, esse encobrimento é um sacrifício que o artista oferece à beleza; um exemplo, não de como se conduz a expressão sobre os limites da arte, mas antes como deve-se submetê-la à primeira lei da arte, à lei da beleza. Por isso afirmava: “só é fecundo o que deixa um jogo livre para a imaginação. Quanto mais nós olhamos, tanto mais devemos poder pensar além. Quanto mais pensamos além disso, tanto mais devemos crer estar vendo.” (1998, p.99)

É importante ter presente que, para Lessing, a arte só existe no campo da imaginação: o efeito da arte para se realizar exige um espaço livre para o desdobramento do jogo da imaginação. A obra de arte deve fazer com que o expectador “queira ver mais” (cf. 1998, p.102). Dessa forma, explica Lessing, quando Laocoonte suspira, a imaginação pode escutá-lo gritar; se, no entanto, ele gritasse, ela não poderia nem subir um degrau acima da sua representação, nem descer um degrau abaixo, sem olhá-lo num estado mais tolerável e, portanto, mais desinteressante. Ela o escuta apenas gemendo ou já o vê morto. Trata-se, portanto, da escolha correta do pathos. Daí a condenação, no Laocoonte, por Lessing, da representação do transitório, pois esta funcionaria como limite da arte bela: “aquele ponto no qual o observador não vê o extremo, mas antes o pensamento o adiciona, com um fenômeno ao qual não ligamos necessariamente o conceito de transitório, já que a sua prolongação graças à arte deveria desagradar.” (1998, p.100)

Lessing explica que o mesmo ocorre com o gritar. A dor violenta que arranca o grito, ou logo cede ou destrói o sujeito que sofre. Daí a crítica do autor ao artista do Laocoonte por não ter evitado o gritar, uma vez que este prejudica a beleza, pois “a nossa imaginação vai muito além de tudo o que o pintor poderia mostrar nesse terrível momento.” (1998, p.100) E mais adiante ele irá afirmar que o que nós achamos belo numa obra de arte, não é o nosso olho que acha belo, mas antes a nossa imaginação através do olho. (cf. 1998, p.130)


De acordo com Lessing, o que visava o mestre de Laocoonte era a suprema beleza sob as condições aceitas da dor corporal. Esta, em toda a sua violência desfigurada, era incompatível com aquela. Ele foi obrigado a reduzi-la, a suavizar o grito em suspiro; não porque denuncia uma alma indigna, mas antes porque ele dispõe a face de um modo asqueroso. O Laocoonte era uma construção que suscitava a compaixão porque mostrava ao mesmo tempo beleza e dor; o que para Lessing se revela no abrir de boca, que na pintura é uma mancha e na escultura uma cavidade que gera os efeitos mais desagradáveis do mundo. (cf. 1998, p.92)

UT PICTURA POESIS

No caso do Laocoonte, a hipótese de Lessing é que os artistas imitaram o poeta. Isso de maneira nenhuma significa diminuir os artistas. Antes, esclarece o crítico, a sabedoria deles aparece na luz mais bela graças a essa imitação, já que seguiram o poeta sem se deixar seduzir por ele nos menores detalhes; possuíam um modelo, mas, uma vez que tiveram que traduzir esse modelo de uma arte numa outra, eles encontraram muitas ocasiões para pensar por si mesmos. E esses pensamentos próprios, que se manifestam nos desvios do seu modelo, comprovam que eles foram tão grandes na sua arte quanto ele na sua. (cf. 1998, p.129)


Ainda na perspectiva de Lessing, quando se diz que o artista imita o poeta, ou que o poeta imita o artista, isso pode significar duas coisas. Ou um deles faz da obra do outro o objeto efetivo da sua imitação, ou ambos possuem o mesmo objeto de imitação e um deles toma emprestado do outro o modo e a maneira de imitá-lo. Mas, “a obra de arte e não aquilo que foi representado sobre a obra de arte é o objeto da sua imitação.” (1998, p.137)

Por fim, a liberdade de se estender tanto sobre o passado quanto sobre o que se segue ao momento único da obra de arte, e, assim, a faculdade de não apenas nos mostrar o que a arte nos mostra mas também aquilo que ele pode apenas nos fazer advinhar. É, segundo Lessing, apenas graças a essa liberdade, graças a essa faculdade, que o poeta alcança o artista, e as suas obras tornam-se as mais semelhantes quando o efeito das duas é igualmente vivaz; e não quando uma leva para a alma através do ouvido o mesmo sem pôr nem tirar o que a outra pode expor aos olhos. Pois nem sempre uma pintura poética pode ser transformada numa pintura material. Ainda cabe lembrar que, para Lessing, a pintura é figuras e cores no espaço, enquanto a poesia, sons articulados no tempo, sendo que a beleza corpórea nasce do efeito harmônico de diversas partes que se deixa ver de uma vez.

REFERÊNCIA
LESSING, Gotthold Ephraim. LAOCOONTE ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia. Tradução Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Ed. Iluminuras, 1998.

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