Richard Rorty
(1931-2007)
Em um ensaio
chamado “Pragmatismo e romanticismo” tentei recolocar o argumento da “Defesa da
poesia” de Shelley. No coração do romanticismo, disse, estava a afirmação
de que a razão só pode seguir os caminhos que a imaginação abriu primeiro. Sem
palavras, não há raciocínio. Sem imaginação, não há palavras novas. Sem
palavras novas, não há progresso moral ou intelectual.
Terminei este
ensaio contrastando a habilidade do poeta de nos dar uma linguagem mais rica
com a tentativa do filósofo de adquirir um acesso não-linguístico ao realmente
real. O sonho de Platão por tal acesso foi ele mesmo uma grande descoberta
poética. Mas no tempo de Shelley, argumentei, este sonho já havia se
esgotado. Nós somos hoje mais capazes de reconhecer nossa finitude — de admitir
que jamais vamos entrar em contato com algo maior que nós mesmos. Esperamos, ao
invés disso, que a vida humana aqui na terra se tornará mais rica do que nos
séculos passados porque a linguagem usada por nossos remotos descendentes terá
mais recursos do que a nossa tinha. Nosso vocabulário estará para os deles como
os dos nossos ancestrais primitivos estavam para os nossos.
Neste ensaio, como
em escritos anteriores, usei ‘poesia’ em sentido largo. Expandi o termo de Harold
Bloom ‘poeta forte’ para cobrir escritores de prosa que inventaram novos jogos
de linguagem para jogarmos – pessoas como Platão, Newton, Marx, Darwin e Freud
tanto quanto os versistas como Milton e Blake. Esses jogos podem envolver
equações matemáticas, ou argumentos indutivos, ou narrativas dramáticas, ou (no
caso dos versistas) inovação da prosódica. Mas a distinção entre prosa e verso
era irrelevante para meus propósitos filosóficos.
Pouco depois de
ter terminado de escrever “Pragmatismo e romanticismo” fui diagnosticado com um
câncer inoperável no pâncreas. Alguns meses depois de ter sido informado sobre
as más notícias, estava sentado tomando café com meu filho mais velho e uma
prima que estava me visitando. Minha prima (que é uma pastora da igreja
batista) me perguntou se eu havia encontrado meus pensamentos se virando em
direção a temas religiosos, e eu disse que não. “Bem, e quanto à filosofia?”,
meu filho perguntou. “Não”, respondi, nem a filosofia que havia escrito nem a
que havia lido parecia ter qualquer ligação com a minha situação. Não tinha
nenhum problema com o argumento de Epicuro de que é irracional sentir medo da
morte, nem com a sugestão de Heidegger de que a ontoteologia origina-se na
tentativa de fugir da nossa mortalidade. Mas nem ataraxia (liberdade de
perturbação) nem Sein zum Tode (ser em direção à morte) me pareciam ser o ponto
principal.
“Nada do que tem
lido tem sido de alguma utilidade?”, insistiu meu filho. “Sim”, falei sem
pensar, “poesia”. “Quais poemas?”, perguntou. Citei duas velhas castanhas
que havia recentemente escavado da memória e que estranhamente estavam me
encorajando, os versos mais citados do “Jardim de Proserpine” de Swinburn.
Agradecemos brevemente
a todos os deuses que há
Por não se viver para sempre;
Por jamais os mortos se erguerem;
Por chegar, por mais que volteie,
o rio sem dúvida ao mar.
We thank with brief thanksgiving
Whatever gods may be
That no life lives for ever;
That dead men rise up never;
That even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.
e “Em seu
aniversário de setenta e cinco anos” de Landor:
Natureza amei, e, próximo à natureza, arte;
Esquentei ambas as mãos diante do fogo da vida,
Ela afunda, e estou pronto para partir.
nature I loved, and next to Nature, Art;
I warmed both hands before the fire of life,
It sinks, and I am ready to depart.
Encontrei conforto
neste meandro lento e nestas brasas gaguejantes. Suspeito que nenhum efeito
comparável poderia ser provocado pela prosa. Não apenas imagens, mas também
rima e ritmo foram necessários para fazer o trabalho. Em linhas como essas,
todos os três conspiram para produzir um grau de compressão, e assim de
impacto, que apenas o verso pode alcançar. Comparada com as emoções moldadas
tramadas pelos versistas, mesmo a melhor prosa é dispersa.
Apesar de diversos
pedaços de verso terem tido grande significados para mim em momentos
particulares da minha vida, jamais fui capaz de escrever algo pessoal (a não
ser rascunhar sonetos durante reuniões departamentais entendiantes – uma maneira
de rabiscar). Nem estou em dia com o trabalho dos poetas contemporâneos. Quando
leio versos, na maioria das vezes se trata dos meus favoritos da adolescência.
Suspeito que minha
ambivalência com relação à poesia, neste sentido restrito, seja o resultado de
complicações edipianas produzidas por ter tido um poeta como pai (ver James
Rorty, Children of the Sun - Macmillan, 1926).
Como quer que
tenha sido, agora gostaria que tivesse passado mais tempo da minha vida
com versos.
Isso não é porque
tema ter perdido as verdades que são incapazes de serem afirmadas em prosa.
Não existem tais
verdades; não existe nada sobre a morte que Swinburne e Landor soubessem, mas
que Epicuro e Heidegger fracassaram em descobrir. Ao contrário, é porque teria
vivido mais plenamente se tivesse sido capaz de recitar mais velhas castanhas –
da mesma forma que também teria se tivesse tido mais amigos íntimos. Culturas
com vocabulários mais ricos são mais plenamentes humanas – mais distantes das
bestas – do que as mais pobres; homens e mulheres individuais são mais
completamente humanos quando suas memórias estão amplamente estocadas com
versos.
Tradução da profa. Susana
de Castro
> O presente texto foi retirado do blog de
Antônio Cícero. O fogo da vida é tido como o último artigo escrito por Richard
Rorty. Publicado originalmente na revista da Poetry Foundation.
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