Profa.
Inês Lacerda Araújo
Diógenes de
Laércio relata a seguinte passagem: “Conta-se ter dito Heráclito a estranhos
que o queriam visitar e espantam-se ao vê-lo aquecer-se junto ao fogão: podeis
entrar, aqui também moram deuses”. Filosofia e vida cotidiana, essa união de
real e ideal é o alimento da filosofia: há duas esferas, aquela em que
projetamos como ideal filosófico a sabedoria, o logos; e a esfera prática com a
necessidade de pensar, avaliar e lidar com as condições históricas herdadas e
as experimentadas.
A filosofia e seus
objetos de análise mudam com o passar do tempo histórico e o surgimento de
novos temas e problemas. Permanece a necessidade de pensar,
raciocinar, ampliar o limiar da razão reflexionante, mas sem ultrapassar
esses limites, pois não há como usar a razão e, ao mesmo tempo inventar
procedimentos que fogem às regras do pensar. Quer dizer, estamos sempre imersos
na lógica do possível, nos signos aprendidos, nas formas significantes.
***
A filosofia
circunscreve quatro dimensões: a da atividade filosófica na cultura;
a do rigor da reflexão, ou seja, o uso de conceitos próprios ao
pensar de tipo filosófico; a dimensão da vida prática e as possíveis
transformações; e aquilo a que a filosofia pode almejar e permite
alcançar.
Como exemplo da
primeira dimensão, Dewey (1859-1952) mostrou que a filosofia não pode se
restringir às puras Formas, ao Ser, às Ideias como entidades em si mesmas,
sublimes e superiores. Assim ela se fecha, se torna missão de experts ecom
tal inacessível como bem cultural e imprestável para a tarefa educacional. Pelo
contrário, as noções, as ideias, os conceitos, os propósitos da filosofia devem
e podem ser abertos para um público mais amplo. O uso do vocabulário hermético,
a pseudo erudição e a superespecialização, nada mais são do que refúgio de
intelectuais afetados e pouco ou nada afeitos à difícil tarefa de levar a
reflexão para iniciantes, para a escola, para a discussão pública de ideias.
O segundo ponto,
o rigor da análise e da reflexão, a tarefa intelectual de busca da
exatidão, do conceito apropriado, da noção iluminadora, podem ser ilustrados
por Wittgenstein (1889-1951), com a atitude prático-teórica do uso habitual de
conceitos, sempre relacional, com papel específico em nossas formas de vida. A
filosofia tem a função terapêutica de reconduzir os conceitos ao seu uso
normal, cotidiano. Se alguém tem dificuldade em compreender o
conceito de "essência", por exemplo, veja como este signo é empregado
nos jogos de linguagem cotidianos. Exercita-se a análise e mergulha-se nas
indagações, sem precisar de inúteis erudições.
O terceiro
aspecto, o que a filosofia permite realizar, sua missão pedagógica, reside
em capacitar à reflexão, à abstração, à apreensão da realidade, em três áreas
afins: a da ética e da política; a da crítica cultural; e a dimensão do
sujeito, isto é, a análise das formas pelas quais experimentamos nossa
subjetividade, nossa individualidade.
Para Aristóteles
(385-322 a C.), a ética e a política são co-dependentes. A sociedade política é
um bem para todos, o homem é um animal social com noção do bem e do mal, do
justo e do injusto. A sociedade política é uma reunião para o viver bem,
possibilitar uma vida feliz e virtuosa; justo é o governante que busca a
felicidade geral.
Quanto à cultura,
Nietzsche (1844-1900) critica a adesão a valores gastos, é preciso
reinventá-los, como faz o poeta solitário. A cultura, diz ele, foi arrancada da
simplicidade e da contemplatividade, há pressa, as águas da religião fluem e
refluem, deixando para trás pântanos e poças; as nações se separam e querem
esquartejar-se; nessa mundanização, as classes eruditas não são mais o farol,
impera a barbárie, inclusive na arte e na ciência (cf. Considerações
Extemporâneas).
E o sujeito?
Foucault (1926-1984), analisa a história das práticas humanas que constituíram
o sujeito moderno, o que desmistifica a pretensa essência, universalidade e
unidade do homem.
E a última
característica, o que se pode almejar com a filosofia? R. Rorty (1931-
2007) diz que ela não nos impele e nem obriga a um dever acima da reflexão e da
crítica nem à defesa cega de uma ideologia; a filosofia não serve para
solucionar problemas, para tal há governos e diversas ciências que podem
oferecer soluções e novas práticas para problemas sociais, políticos e econômicos.
Mas ela é indispensável para nossos projetos de vida, para transformar e
apontar direções, para alcançar mais solidariedade, respeito à diferença,
liberdade de crítica. A liberdade é imprescindível, sociedades com liberdade
plena para refletir e agir, para valorar e criar, evitam o medo, a
intolerância, o sectarismo, a cegueira ideológica.
Daí o título desta
postagem: o filósofo ao refletir, avaliar, ser criterioso, ponderar, só
pode e deve ser justo.
* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.
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