quarta-feira, 11 de setembro de 2013

UM CONTO DE AMOR OUTONAL

José Augusto de Castro e Costa


Seu nome jamais fora cogitado, mesmo porque não se sabia se a criança a nascer seria menino ou menina. Aliás não havia certeza nem se tal nascimento viria a ocorrer. Muitos esperavam que não acontecesse! Em Rio Branco, até torciam! Seria preocupante levar a efeito o nascimento da criança, em razão das dificuldades para seu sustento, para sua sobrevivência, e até mesmo dada  a excepcionalidade do acontecimento.

A mãe humilde, sem profissão definida e sem residência própria, no alto de seus vinte e seis anos não conseguira ocultar sua gravidez indesejada, mesmo depois de esgotados todos os meios contraceptivos.

Com vistas a evitar o nascimento da criança haviam-lhe providenciado a maior diversidade de infusões e chás químicos e caseiros, classificados em toda a região amazônica, como poderosos estimulantes dos emenagogos, tais como Chá de Estragão, Fura-Parede, Orégano, Ruiva-dos-Tintureiros, Tomilho e Zimbro-Comum, adicionados a  “coquetéis” de abacate verde com abacaxi e maracujá verde. À noite, antes de adormecer, administravam-lhe infusões com Alfazema, Arruda, Jaborandí, Louro, Urtiga-Branca e Vassourinha, entre outros. A pobre mulher ingerira tudo isso durante os nove meses de gestação e mais uma torturante faixa a sufocar-lhe o ventre e sobretudo o feto. Para o sintomático dilatamento do ventre, a informação aos não muito chegados à família  e aos ingênuos, era de que a moça estaria acometida de um volumoso tumor.

– E o pai?

– Que pai???

O autor da façanha seria um garoto, na efervescência dos seus treze anos, ainda desprovido da capacidade ético-jurídico para que lhe fosse imputada qualquer responsabilidade.

Poucos dias antes do Natal a jovem viria dar à luz um menino, às nove horas da manhã de um domingo, causando um tremendo alvoroço,na rua Quintino Bocaiuva, tipo uma prestativa vizinha, carregando uma bacia com água,  escorregar num degrau da alta escada e esbarrar em outras duas que subiam com toalhas e jarras com água limpa. O aguaceiro banhou e assustou um gato que dormia sossegadamente ao pé da escada pois, aturdido, em espetacular salto para trás fora cair sobre o fogão a lenha que ardia em brasa, arremetendo-se rapidamente para o centro de umas pessoas que especulavam o destino do recém-nascido, donde, apavorado com os sobressaltados, projetara-se em direção à janela mais próxima, colidindo no trajeto com um macaquinho guariba, que encontrava-se no ombro de outra vizinha e, de passagem, trombando com um papagaio  que a tudo assistia do parapeito, indo os três precipitar-se no quintal.

Alheio a tudo a criança nascera naturalmente. Vira-se, então, um menino perfeitamente saudável, robusto, sem a menor sequela imaginada, em função do que sofrera   a mãe. O ambiente era de alegria, apesar de certa estupefação.

De súbito, a irmã primogênita da parturiente lembrara-se de uma filha sua, residente em Manaus, casada, propícia a adotar uma criança, e que o aspirava em virtude de comprovada esterilidade. Julgara nada mais favorável que ela assumisse a criação daquele primo, seu sangue, como filho seu, para dar-lhe amor, afeto e muito ensinamento.

Com a aprovação de todos, fizeram-se as vontades dos demais! Enfim, Feliz Natal!

Mesmo não sendo de pais biológicos, o menino, agora filho legítimo, crescera em estatura, ensinamento e filosofia de vida, adquirindo experiências vivenciadas em várias comunidades em que seus pais instalavam-se a trabalho. A primeira infância transcorrera-se no seio familiar alternando-se, em seguida, para internato, pensões masculinas e repúblicas em localidades distantes  dos genitores, que viviam em periódicas transferências.

Romanticamente o rapaz mantivera relacionamentos fugazes, destacando-se apenas um de maior prolongamento, talvez por razões circunstanciais, quando de sua fixidez residencial mais intensa, na pequenina Rio Branco, onde os encantos namoráveis eram proporcionalmente mínimos. Após um considerável tempo de idílio, porém, eis que sua família, por motivos funcionais, fora transferida novamente para Manaus.

Passaram-se os anos e o nosso protagonista, não obstante seu anseio por constituir uma família, continuava com envolvimentos transitórios.

Anos depois, o rapaz experimentara a sensação de haver encontrado a quem tanto procurara. Apresentado a uma linda criatura, dispusera-se em levar a passeio aquela verdadeira musa inspiradora. Na verdade ele já a conhecia, havia algum tempo, quando, do alto dos seus 20 anos. Em Rio Branco observara algo de fascinante daquela então menina-moça, que, igual a uma nuvem passageira, agora, surpreendentemente, retornaria aos seus olhos, como uma nova escultura carnal.

Para um inesperado passeio,  o jovem aguardara, por um instante, e eis que surge aquela imagem de mulher linda, meiga, suave, enternecida, simpática, risonha e... muito mais.  Isso, além de bela  como  um calmo bom sonho, com olhos brilhantes e ligeiramente puxados, corpo vistoso, carne consistente – com formato de bela escultura grega. Até hoje, quem tem a felicidade de desfrutar de seu relacionamento, há por certo de sentir ter sido ela semelhante a própria personagem, de primeira grandeza, nas inspirações de Victor Hugo a Rudyard Kipling, igual a própria musa de Orestes Barbosa a Pixinguinha, ao lirismo de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, similar  a criação poética de Olavo Bilac a Manuel Bandeira, romântica como a do verdadeiro “ultimo desejo” de Noel Rosa! A moça surgira como o mais sublime dos ideais,  o amor que ressuscita,  a lágrima que comove,  o evangelho que aperfeiçoa,  a mulher mulher, onde começa o céu.

Embevecido, inebriado, extasiado diante de tal essência materializada, o jovem a conduzira  ao fusca vermelho e acomodara-a no banco ao seu lado.

O perfume adocicado no interior do fusca, contribuíra para mais encantar aquele rapaz  atônito e surpreso, diante o triunfo imortal da beleza feminina.

Visitam, os dois, vários locais naquela tarde tórrida, sob o escaldar da canícula causticante da cidade que a moça não conhecia. O passeio em Manaus contudo,  constituíra-se em convite ao usufruto de um cenário bucólico, ao contato direto com a flora, com a diversidade das cachoeiras, com a natureza enfim. Os ingredientes de tal paisagem inspiravam qualquer ser vivo ao complemento e consumação do prazer físico, perturbador como uma carícia carnal, quando poderiam  premer contra o peito de um, o seio agitado da outra, ao amar o amor. Talvez não! O tal prazer físico seria preterido por registros fotográficos para a posteridade (?), por contemplação à própria natureza, por divagações... O jovem nada providenciara em relação ao coração da moça, quando a natureza propriamente dita era ela. Protelando, seguira ele, como que desdenhando as oportunidades surgidas, fato que vieram transformar-se em desperdício. Ao final da tarde, ao sol poente, encerrara-se o passeio e eis que, juntamente com o dia, também falece o futuro de um jovem casal de amantes.

O rapaz devolvera a moça às suas acomodações e despedira-se... sorriso pálido... disfarçando sua timidez, sem saber que naquele instante iniciava-se uma punição a qual, para um possível reencontro desse casal, haveria de ser cumprido um quarentenário do mais absoluto desencontro.

A esperança em receber as fotografias daquele agradável, ingênuo e inesquecível passeio, passara a fazer parte de uma incessante expectativa na mente do jovem. No princípio deitava-se e levantava-se, adormecia e despertava com o pensamento voltado para aquela moça, residente em outra cidade e  para aquele turismo por recantos bucólicos, em  inesquecível convívio.

Os dias esvaneceram, os meses passaram... Fizera-se necessário  buscar notícias daquela formosura original  que dava vida a seus anseios. E assim o fizera, porém sem sucesso! Agora os anos, também, foram diluindo... apagando-se! Romperam-se as esperanças! Arderam-se as  lembranças doces   de um afetuoso  passado!

As cinzas pretéritas dissiparam-se e os desacertos existidos, ocultaram-se no subsolo do leito do pântano perdido da existência humana! Encontrava-se sentimentalmente só! Tão só que nem recordara já haver vivido semelhante situação há quarenta anos!

Em Manaus, aonde passara a viver, o anúncio do lançamento de um livro, sobre uma certa árvore genealógica, atraíra sua atenção para duas amigas que ainda permaneciam residindo em sua cidade natal, as quais estariam presentes ao evento, ocasião em que poderia revê-las após muitos anos. Ao chegar ao recinto e apresentar os devidos cumprimentos, acomodara-se para assistir ao desenrolar do acontecimento, em que incluía-se um DVD relacionado à família homenageada. De súbito, uma das amigas servira-se de um celular e, repentinamente, passara-lhe o telefone. O rapaz julgara relacionar-se a algum outro conhecido comum. Porém, ao ouvir a voz de quem se tratava, tivera uma sensação de engasgamento que o atordoara, literalmente.

Quarenta anos depois, a voz daquela por quem, involuntariamente, fizera-se por esperar... agora, como um “big bang”, soava-lhe estrondosa e ao mesmo tempo adocicada, como naquela tarde perdida no tempo e no espaço, que o abastecera de sentimentos esperançosos, ao fazer-lhe acreditar na veracidade das palavras de uma deusa. Conseguiu balbuciar em rápidos minutos:

– Até hoje estou esperando aquelas nossas fotografias, testemunha fiel do nosso encontro. Há quarenta anos espero falar a você meus sentimentos íntimos. A senha para isso seriam aquelas fotos! A circunstância surpreendente que instalou-se naquele nosso passeio, frustrou-me a qualquer manifestação além da amizade. Aliás, nem agora está sendo propício para conversarmos. Passarei um e-mail para você, sem falta! Beijos!

No dia seguinte, postado o e-mail, eis que instalara-se uma terrível, inexplicável e decepcionante incomunicabilidade. Sem a esperada resposta, o nosso protagonista absorvera a ausência da desejada comunicação com inquietante e visível expectativa. Em contato com a amiga responsável pelo surpreendente reencontro, fora informado de que seu e-mail havia sido recebido pela destinatária, sim!

Então, talvez fora o caso de um novo sumiço, em razão de desinteresse, de indisponibilidade ou até mesmo por declinação motivado por  um comprometimento. Deveria  haver algo a impedir!

Após quarenta anos aquela mesma ansiedade voltara a apoderar-lhe a alma, abater-lhe o humor, embrutecer-lhe o convívio com tudo e com todos. A busca pelos e-mails recebidos fizera-se uma preocupação constante. Somente um e-mail o confortaria – este  não figurava em sua Caixa de Entrada... Passaram-se  os minutos... Passaram-se as horas... Passaram-se os dias! Pois o esperado e-mail não chegara, ainda! Então, decidira retomar os planos anteriores, respirar novos ares. Partiria, de qualquer modo, para outra cidade! Afinal, por achar-se na fase outonal da vida, ele procuraria distanciar-se dos atuais envolvimentos e mudar as atitudes. Vida nova, ares novos!

Ao final de um dia, já transcorrido quase um mês,  revira, como de hábito,  os e-mails recebidos e... lá depara-se com a agradável surpresa. Pusera-se a ler, avidamente o bendito texto, cujo final deixara   transparecer um fio de esperança. A pessoa amada dissera que, sempre ao rever as fotos, sentia invadir-lhe, inexplicavelmente, um sentimento de amorosidade. Fora o bastante, pois, a partir daí, o relacionamento virtual começara a concretizar-se, adicionara-se ao  contato telefônico, o qual, com o passar dos dias tornara-se frequente, numa progressão geométrica. Por residirem em cidades diferentes, marcaram, para um reencontro preliminar, a cidade em que nasceram – Rio Branco.

O contato pessoal fora sentimentalmente excelente, romanticamente transcendental!  A força do destino que havia separado aquele casal por quarenta anos, viera suscitar, no outono da vida, um amor reciprocamente sólido, absoluto e indelével.

Aquele menino, sujeito a tamanhas insensibilidades para não vir ao mundo, achara-se consciente de sua autenticidade humana, disposto a superar todos os dias sua própria personalidade, despedaçando, dentro si, tudo o que lhe parecera velho e morto, pois lutar é a palavra vibrante que dá força aos fracos e determina os fortes.

Aparadas algumas poucas arestas, acertados determinados pontos, dirimidas quaisquer incertezas, os protagonistas passaram a viver juntos o desenrolar da vida, rememorando os dizeres do poeta: “veja os encontros, superando os desencontros, que motivam os reencontros, refazendo o inacabado”.

Hoje ele sente que terá pela vida afora,
Uma rainha, até quando Deus quiser!
Ih!  Quase foi dito agora
O       n   o   m   e      dessa mulher!

 Agora quero ressalvar enganos,
Declarando que, neste mundo, nada vi  nem vivi,
Pois só depois de quarenta anos,
Aí, sim   –    foi que eu nasci!.



* José Augusto de Castro e Costa é cronista acreano. Reside em Brasília. Neste blog, já escreveu a série Brasileiro por opção, e agora escreve outra série intitulada HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU.

> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.

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