Couto de Magalhães
in O Selvagem (1876)
No princípio não havia noite – dia somente
havia em todo tempo. A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia
animais; todas as coisas falavam.
A filha da Cobra Grande – contam – casara-se
com um moço.
Esse moço tinha três fâmulos fiéis. Um dia,
ele chamou os três fâmulos e disse-lhes: – Ide passear, porque minha mulher não
quer dormir comigo.
Os fâmulos foram-se, e então ele chamou sua
mulher para dormir com ele. A filha da Cobra Grande respondeu-lhe:
– Ainda não é noite.
O moço disse-lhe:
– Não há noite; somente há dia.
A moça falou:
– Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo,
manda buscá-la lá, pelo grande rio.
O moço chamou os três fâmulos; a moça
mandou-os à casa de seu pai, para trazerem um caroço de tucumã.
Os fâmulos foram, chegaram à casa da Cobra
Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito bem fechado e disse-lhes:
– Aqui está; levai-o. Eia! Não o abrais,
senão todas as coisas se perderão.
Os fâmulos foram-se, e estavam ouvindo o
barulho dentro do coco de tucumã, assim: tem, ten, ten... xi... Era o barulho
dos grilhos e dos sapinhos que cantam de noite.
Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse
a seus companheiros: – Vamos ver que barulho será este?
O piloto disse: – Não; do contrário nos
perderemos. Vamos embora, eia, ramai!
Eles foram-se e continuaram a ouvir aquele
barulho dentro do coco de tucumã, e não sabia que barulho era.
Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se
no meio da canoa, acenderam o fogo, derreteram o breu que fechava o coco de
tucumã e abriram-no. De repente tudo escureceu.
O piloto então disse: – Nós estamos perdidos;
e a moça, em sua casa, já sabe que nós abrimos o coco de tucumã!
Eles seguiram viagem.
A moça, em sua casa, disse então a seu marido:
– Eles soltaram a noite; vamos esperar a
manhã.
Então todas as coisas que estavam espalhadas
pelo bosque se transformaram em animais e pássaros.
As coisas que estavam espalhadas pelo rio se
transformaram em patos e em peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e
sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e o bico do
pato; da canoa, o corpo do pato; dos remos, as pernas do pato.
A filha da Cobra Grande, quando viu a estrela
d’alva, disse a seu marido:
– A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia
da noite.
Então ela enrolou um fio, e disse-lhe: – Tu
serás cujubim. Assim ela fez o cujubim; pintou a cabeça do cujubim de branco,
com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho com urucu, e, então, disse-lhe:
– Cantarás para todo sempre quando a manhã vier raiando.
Ela enrolou o fio, sacudiu cinza em riba
dele, e disse: tu serás inambu, para cantar nos diversos tempos da noite e de
madrugada.
De então para cá todos os pássaros cantaram
em seus tempos, e de madrugada, para alegrar o princípio do dia.
Quando os três fâmulos chegaram, o moço
disse-lhes: – Não fostes fiéis – abristes o caroço de tucumã, soltastes a noite
e todas as coisas se perderam, e vós também, que vos metamorfoseastes em
macacos, andareis para todo sempre pelos galhos dos paus.
(A boca preta e a risca amarela que eles têm
no braço dizem que são ainda o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã e
que escorreu sobre eles quando o derreteram).
MAGALHÃES, Couto de. O selvagem. São Paulo:
Livraria Magalhães, 1913. p.215-217
NOTA: a primeira edição de O SELVAGEM, de
autoria do general Couto de Magalhães, é de 1876. Tem-se que se compreender que
é um livro feito dentro da mentalidade de sua época, a de que era preciso
amansar e civilizar os índios. O livro é loquaz para assinalar como era a
posição do governo oficial em relação aos povos indígenas, uma visão
utilitarista, quando não, exterminadora. No entanto, o melhor do livro são as
inúmeras lendas que o autor reuniu a partir de seus contatos com os diversos
povos indígenas do Brasil, que se encontra na VIII parte da obra. Entre outras,
a que publicamos acima. Sobre “Como a noite apareceu”, o autor tece o seguinte
comentário: “Esta lenda é provavelmente um fragmento do Gênesis dos antigos selvagens sul-americanos. (...) Aqui, como nos Vedas, como no Gênesis, a questão é no fundo resolvida pela mesma forma, isto
é: no princípio todos eram felizes; uma desobediência, num episódio de amor,
uma fruta proibida, trouxe a degradação. A lenda é, em resumo, a seguinte: no
princípio, não havia distinção entre animais, o homem e as plantas: tudo
falava. Também não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não
quis coabitar com o seu marido enquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim
como havia água no fundo das águas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi
remetida encerrada dentro de um caroço de tucumã, bem fechado, com proibição
expressa aos condutores de o abrirem, pena de perderem a si e a seus
descendentes e a todas as coisas. A princípio, resistem à tentação; mas depois
a curiosidade de saber o que havia dentro da fruta os fez violar a proibição, e
assim se perderam.”
Eu queria um resumo mas n acho em nenhum lugar
ResponderExcluirOi isso me ajudou muito 👍
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