segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A SUPOSTA EXISTÊNCIA

Carlos Drummond de Andrade


Como é o lugar 
quando ninguém passa por ele? 
Existem as coisas 
sem ser vistas? 

O interior do apartamento desabitado, 
a pinça esquecida na gaveta, 
os eucaliptos à noite no caminho 
três vezes deserto, 
a formiga sob a terra no domingo, 
os mortos, um minuto 
depois de sepultados, 
nós, sozinhos 
no quarto sem espelho? 

Que fazem, que são 
as coisas não testadas como coisas, 
minerais não descobertos – e algum dia 
o serão? 

Estrela não pensada, 
palavra rascunhada no papel 
que nunca ninguém leu? 
Existe, existe o mundo 
apenas pelo olhar 
que o cria e lhe confere 
espacialidade? 

Concretitude das coisas: falácia 
de olho enganador, ouvido falso, 
mão que brinca de pegar o não 
e pegando-o concede-lhe 
a ilusão de forma 
e, ilusão maior, a de sentido?

Ou tudo vige 
planturosamente, à revelia 
de nossa judicial inquirição 
e esta apenas existe consentida 
pelos elementos inquiridos? 
Será tudo talvez hipermercado 
de possíveis e impossíveis possibilíssimos 
que geram minha fantasia de consciência 
enquanto 
exercito a mentira de passear 
mas passeado sou pelo passeio, 
que é o sumo real, a divertir-se 
com esta bruma-sonho de sentir-me 
e fruir peripécias de passagem? 

Eis se delineia 
espantosa batalha 
entre o ser inventado 
e o mundo inventor. 
Sou ficção rebelada 
contra a mente universa
e tento construir-me 
de novo a cada instante, a cada cólica, 
na faina de traçar 
meu início só meu 
e distender um arco de vontade 
para cobrir todo o depósito 
de circunstantes coisas soberanas. 

A guerra sem mercê, indefinida 
prossegue, 
feita de negação, armas de dúvida, 
táticas a se voltarem contra mim, 
teima interrogante de saber 
se existe o inimigo, se existimos 
ou somos todos uma hipótese 
de luta 
ao sol do dia curto em que lutamos. 


ANDRADE, Carlos Drummond de. A paixão medida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p.14-16

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