Uma página memorável de Matias Aires, certamente uma das melhores que li nos últimos anos, de imagens significativas, sentido profundo e inquietante.
Nascem os homens iguais; um mesmo e igual
princípio os anima, os conserva, e também os debilita e acaba. Somos
organizados pela mesma forma, e por isso estamos sujeitos às mesmas paixões e
às mesmas vaidades. Para todos nasce o sol; a aurora a todos desperta para o trabalho;
o silêncio da noite anuncia a todos o descanso. O tempo que insensivelmente
corre, e se distribui em anos, meses e horas, para todos se compõe do mesmo
número de instantes. Essa transparente região a todos abraça; todos acham nos
elementos um patrimônio comum, livre e indefectível; todos respiram o ar; a
todos sustenta a terra; as qualidades da água e do fogo a todos se comunicam.
O mundo não foi
feito mais em benefício de uns, que de
outros, para todos é o mesmo; e para o uso dele todos têm igual direito; ou
seja pela ordem da natureza, ou seja pela ordem da sua mesma instituição; todos
achamos no mundo as mesmas partes essenciais. Que coisa é a vida para todos
mais do que um enleio de vaidades e um giro sucessivo entre o gosto, a dor, a alegria, a tristeza, a aversão e o amor? Ainda
ninguém nasceu com a propriedade de insensível; a vida não pode subsistir, sem
estar subordinada às impressões do gosto e do sentimento. Todos nascemos para
chorar e para rir; a circunstância de chorar mais, ou menos, resulta de cada um
de nós. A violência e a vaidade das nossas paixões nos fazem apetecer, e quem
apetece, já se expõe aos delírios do riso e às amarguras das lágrimas; esse
mesmo apetecer ainda só por si é uma espécie de sentimento e de prazer; a
imaginação nos antecipa tudo, por isso o nosso contentamento, ou a nossa pena,
chegam primeiro do que o seu objeto, e este quando vem, já nós estamos, ou
abatidos de tristeza, ou cheios de alegria: somos tão sensíveis, que os sucessos
para nos moverem não é necessário que estejam em nós, basta que os vejamos de
longe; a nossa sensibilidade tem maior força na nossa mesma apreensão; daqui
vem que no mal que se espera, ou se receia, não pode haver alívio, porque o
pensamento Ihe dá uma extensão maior; em lugar, que o mal que já se sente, pode
consolar-se, porque então se vê que tem limite. As coisas parecem que se
espiritualizam para se entregarem a nós assim que as imaginamos; ou ao menos
para que a eficácia delas se incorpore em nós, muito antes que elas cheguem; e
deste modo as coisas antes que as tenhamos, já são nossas; e quando a causa se
apresenta, já temos sentido os seus efeitos; por isso desconhecemos tudo o que
vimos a alcançar, e nos parece que há falta naquilo que vimos a conseguir: as
coisas, quando chegam, já nos acham saciados; porque o desejo é uma espécie de
gozar mais ativa e mais durável, mais forte e mais contínua; daqui procede o
ser tão deleitável a esperança, porque é uma espécie de possessão daquilo que
se espera. Quem imagina o que deseja, tudo pinta com cores lisonjeiras e mais
vivas; por isso a verdade é grosseira e mal polida; tudo o que descobre, é sem
adorno; antes faz desvanecer aquela aparência feliz, com que os objetos primeiro
se deixam ver na ideia, do que se mostrem na realidade. Todas estas propensões
e inclinações se encontram em cada um de nós; e assim devia ser, porque as
variações do tempo, da idade, da fortuna e dos sucessos, a todos compreende, e
a todos iguala; só a vaidade a todos distingue, e em todos põe um sinal de
diferença e um caráter de desigualdade, e por mais que a terra fosse feita para
todos, nem por isso a vaidade crê que um homem seja o mesmo que outro homem. É
sutil a vaidade em discorrer; por isso nos inspira que há desigualdade no que é
igual; que há diferença no que é o mesmo; e que há diversidade donde a não pode
haver: mas que importa que a vaidade assim discorra, se sempre é certo que os
homens todos são uns, e que os não há de diferente fábrica; e que tudo quanto a
vaidade ajunta ao homem é emprestado, fingido, suposto e exterior. Tirada a
insígnia, o que fica é um homem simples; despida a toga consular, também fica o
mesmo. Se tirarmos do capitão a lança, o casco de ferro, e o peito de aço, não
havemos de achar mais do que um homem inútil e sem defesa, e por isso tímido e covarde.
Os homens mudam todas as vezes que se vestem; como se o hábito infundisse uma
nova natureza: verdadeiramente não é o homem o que muda, muda-se o efeito que
faz em nós a indicação do hábito. Debaixo de um apresto militar concebemos um
guerreiro valoroso, debaixo de uma vestidura negra e talar, o que se nos figura
é um jurisconsulto rígido e inflexível; debaixo de um semblante descarnado e
macilento, o que descobrimos é um austero anacoreta. O homem não vem ao mundo
mostrar o que é, mas o que parece; não vem feito, vem fazer-se; finalmente não
vem ser homem, vem ser um homem graduado, ilustrado, inspirado; de sorte que os
atributos com que a vaidade veste ao homem, são substituídos no lugar do mesmo
homem; e este fica sendo como um acidente superficial e estranho: a máscara,
que encobre, fica identificada e consubstancial à coisa encoberta; o véu, que
esconde, fica unido intimamente à coisa escondida; e assim não olhamos para o
homem, olhamos para aquilo que o cobre e que o cinge; a guarnição é a que faz o
homem, e a este homem de fora é a quem se dirigem os respeitos e atenções; ao de
dentro não; este despreza-se como uma coisa comum, vulgar e uniforme em todos.
A vaidade e a fortuna são as que governam a farsa desta vida; cada um se põe no
teatro com a pompa com que fortuna e a vaidade o põem; ninguém escolhe o papel;
cada um recebe o que lhe dão. Aquele que sai sem fausto, nem cortejo, e que
logo no rosto indica que é sujeito à dor, à aflição e à miséria, esse é o que
representa o papel de homem. A morte, que está de sentinela, em uma mão tem o
relógio do tempo, na outra tem a foice fatal, e com esta, de um golpe certo e
inevitável, dá fim à tragédia, corre a cortina e desaparece: a fortuna e a
vaidade, que vêem desbaratada a cena, caídas por terra as aparências,
prostrados os atores, emudecido o coro, trocados os clarins em flautas tristes,
os hinos em trenos, os cânticos em elegias, e em epitáfios os emblemas; as rosas
encarnadas convertidas em lírios roxos, os girassóis em desmaiadas açucenas,
entrelaçados os louros no cipreste, os cajados confundidos com os cetros, e com
o burel a púrpura; a vaidade, pois, e a fortuna, que em menos de um instante
viram desvanecidos os triunfos da vida pelos triunfos da morte,
precipitadamente fogem, e deixam um lugar cheio de horror e sombras, e donde só
reina o luto, a verdade e o desengano. Assim acaba o homem, assim acabam as
suas glórias, e só assim acaba a sua vaidade.
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DOM HÉLDER CÂMARA
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