Matias Aires (1705-1763)
A corrupção das gentes está tão espalhada, que faz parecer virtude uma obrigação que se cumpre, uma dívida que se paga, ou uma verdade que se diz. As cousas não se regulam pelo que deviam ser, mas pelo que poderiam ser; isto é, o depósito se entregou, podendo-se negar; a dívida que se podia não pagar, e se pagou; a verdade que se disse, podendo-se esconder; e assim a privação do vício serve de virtude atual; e de alguma sorte, para ser um homem virtuoso, não é necessário que faça algum ato de virtude, basta que não faça algum de vício; e de algum modo também, o ser leal não depende do exercício da lealdade, basta que se não exercite alguma aleivosia. O mundo está tão pervertido, que a bondade dos homens não se tira da razão de serem bons, mas da razão de não serem maus: o nome da virtude não vem da virtude presente, mas do vício ausente; o merecimento das coisas não se toma pelo que são, nem pela forma que têm, mas pelo que não são, e pela forma contrária que não têm. Daqui vem que uma ação é louvável, só porque não é repreensível. Aquele meio de não ser nem uma coisa nem outra, parece que o não há já; ficaram os extremos, e extinguiu-se o meio.
AIRES, Matias.
Reflexões sobre a vaidade dos homens. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. p.178-179
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