sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

CAFÉ PINGADO

Jacques Prévert (1900-1977)


É terrível 
O barulhinho de ovo quebrado contra o balcão de zinco
terrível esse barulho 
quando ele se agita na memória do homem faminto
terrível também a cabeça do homem
a cabeça do homem que tem fome
quando se vê às seis da manhã
no espelho da grande loja
uma cabeça cor de poeira
mas não é a sua cabeça que ele vê
na vitrine da casa Fauchon
pouco lhe importa essa sua cabeça de homem
não pensa nela
sonha
imagina uma outra cabeça
cabeça de vitela por exemplo
com molho de vinagre
ou cabeça de qualquer coisa que se come
e mexe lentamente o maxilar
lentamente
e trinca os dentes lentamente
pois o mundo se diverte à custa da sua cabeça
e ele nada pode contra o mundo
e conta com os dedos, um, dois, três
um dois três
três dias que não come
e já está cansado de repetir por três dias
As coisas não podem continuar assim
mas continuam
três dias
três noites
sem comer
e por detrás do vidro
patês garrafas conservas
peixes mortos protegidos pelas latas
latas protegidos pelo vidro
vidro protegidos pelos tiras
tiras protegidos pelo medo
quantas barricadas por seis sardinhas infelizes...
Mais adiante o bar e o restaurante
café com leite e pãezinhos quentes
o homem titubeia
e lá dentro de sua cabeça
um nevoeiro de palavras
um nevoeiro de palavras
sardinhas para comer
ovo cozido café com leite
café pingado rum
café com leite
café com leite
café com crime pingado sangue!...
Um homem muito estimado no bairro
cortaram a garganta dele em pleno dia
o assassino o vagabundo lhe roubou
dois francos
ou seja um café pingado
zero franco setenta centavos
dois pãezinhos com manteiga
e vinte e cinco centavos de troco a gorjeta do garçom
É terrível 
o barulhinho do ovo cozido quebrado contra o balcão de zinco
terrível esse barulho
quando se agita na memória do homem faminto.


LA GRASSE MATINÉE

Il est terrible
le petit bruit de l'oeuf dur cassé sur un comptoir d'étain
il est terrible ce bruit
quand il remue dans la mémoire de l'homme qui a faim
elle est terrible aussi la tête de l'homme
la tête de l'homme qui a faim
quand il se regarde à six heures du matin
dans la glace du grand magasin
une tête couleur de poussière
ce n'est pas sa tête pourtant qu'il regarde
dans la vitrine de chez Potin
il s'en fout de sa tête l'homme
il n'y pense pas
il songe
il imagine une autre tête
une tête de veau par exemple
avec une sauce de vinaigre
ou une tête de n'importe quoi qui se mange
et il remue doucement la mâchoire
doucement
et il grince des dents doucement
car le monde se paye sa tête
et il ne peut rien contre ce monde
et il compte sur ses doigts un deux trois
un deux trois
cela fait trois jours qu'il n'a pas mangé
et il a beau se répéter depuis trois jours
Ça ne peut pas durer
ça dure
trois jours
trois nuits
sans manger
et derrière ces vitres
ces pâtés ces bouteilles ces conserves
poissons morts protégés par les boîtes
boîtes protégées par les vitres
vitres protégés par les flics
flics protégés par la crainte
que de barricades pour six malheureuses sardines....
Un peu plus loin le bistro
café-crème et croissants chauds
l'homme titube
et dans l'intérieur de sa tête
un brouillard de mots
un brouillard de mots
sardines à manger
oeuf dur café-crème
café arrosé rhum
café-crème
café-crème
café-crime arrosé sang!.....
Un homme très estimé dans son quartier
a été égorgé en plein jour
l'assassin le vagabond lui a volé
deux francs
soit un café arrosé
zéro francs soixante-dix
deux tartines beurrées
et vingt-cinq centimes pour le pourboire du garçon.
Il est terrible
le petit bruit de l'oeuf dur cassé sur un comptoir d'étain
il est terrible ce bruit
quand il remue dans la mémoire de l'homme qui a faim.


PRÉVERT, Jacques. Poemas. Introdução, seleção e tradução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.26-31

Um comentário:

  1. passando por aqui para parabenizar pelo blog, todas as vezes que o acesso, fico admirado pela riqueza informativa existente nele.

    Abçs


    Eduardo Carneiro

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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
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