Ruy Barata (1920-1990)
ANJOS DO ABISMO
Quero chegar diante de ti
não como o vulto familiar que doura o teu
sossego,
não como a imagem do sonho que se perde na
bruma,
mas como o fantasma de dentro de ti mesmo.
Quero chegar diante de ti,
e olharás minha longa cabeleira,
minhas faces esvoaçantes, meus olhos
incolores
e adivinharás que atravessei os limites do
eterno.
Ó esta noite todas as luzes estarão veladas
pelo sono,
todos os silêncios serão devorados pela
eternidade,
todas as chagas ressurgirão das dores,
todos os olhos estarão desmesuradamente
abertos
mas não poderemos sentir a Sua mágica
presença
porque então passamos à pátria das essências.
Esta noite chegarei diante de ti,
nossas almas se confundirão na grande viagem,
nossos olhos se alongarão ao paraíso dos
símbolos
onde nasce o grande mar das almas moribundas.
Chegarei sobre a tranquilidade dos teus
cânticos
e te assombrarás com este vulto notívago de
morto
que se suspende milagrosamente além dos
tempos
e que conduz as asas multicores
no derradeiro voo das espécies.
Ó sim sou eu por sobre as nebulosas,
fantasma que povoa quatro mundos,
imagem perdida e mais tarde encontrada
no ilimitado céu da poesia.
LÁ FORA ESTÁ O AMOR QUE NOS ESPERA
Esta noite como ficar prisioneiro dos teus
braços
ó aparecida amada do princípio da vida?
Como escutarei as palavras de amor que dirás
enlanguescida
quando lá fora anda a grande e misteriosa
noite das perdidas?
Lá fora está o amor que nos espera,
lá fora está a noite plena que me soube
amoroso,
lá andam os companheiros que se embriaga
líricos e confidentes,
lá estão as mulheres que chegaram e
desapareceram
sob as luzes da cidade desconhecida.
Ó amada quisera partir para a noite como quem
caminha para o mar,
quisera partir ébrio de gozo, de emoções
desconhecidas,
cantando cantando como os boêmios embriagados
e encher o mundo com o meu cântico de
fraternidade.
Quisera partir para longe do amor que me
prometes,
longe da oração que dirás transfigurada
pois Maura está perdida,
Maura a mais dedicada das filhas do Senhor.
De novo partir romântico e transcendente,
de novo sentir a mensagem dos mundos perdidos
e o cheiro das árvores que acordarão molhadas
de sereno.
De novo ó tímido, ó louco,
esperar impaciente a volta das estrelas
com a mesma ânsia de quem espera as amantes,
com o mesmo enlevo do poeta antigo.
Ó noites distantes, ó noites misericordiosas,
noites de Maura, Olinda morta, Heloísa
florindo em frente aos cutiteiros,
noites de paz, de fé, de quietude,
noites em que eu abrigava o amor de todas as
mulheres.
Noites de sonho, noites de música velada,
noites de perfumes decadentes,
noites em que o amor era o mistério
e o rio era a esperança.
Noite pálidas, trêmulas estrelas nos céus
primaveris,
halos de luz bailando no meu corpo
pela rua sonolenta da cidade feliz.
Ó como vos anseio,
em vós me vejo partindo iluminado,
os companheiros ruidosos,
os velhos adivinhando em nossos olhos os
desejos
tristes flores de uma terra nunca vista.
Noites de junho, chuvas de janeiro,
amor de Fernanda no mês de Maria.
Natal festivo, sinos das capelas,
quando eu ia transfigurado pelas velas
levar a prece ao virginal Menino.
Ó como vos sinto mais perto e emotivas,
como vos lembro tão límpidas e claras
e como vos desejaria agora sobre os meus
olhos adormecidos
tão cheios de vós, tão ansiosos das
revelações.
Ó amada não me deixes esquecido no amor
tranquilo das alcovas,
não deixes meu canto parar nas janelas
fechadas
como as preces dos que vão morrer.
Eu quero a noite,
a noite calma dos passos soturnos,
a noite boemia dos subúrbios distantes,
a noite lírica dos que não têm amantes,
a noite miserável dos cães vagabundos.
POEMA DOS NOTURNOS CAMINHOS
Se chegares agora dos noturnos caminhos
eu te oferecerei meus olhos claros,
os pássaros maravilhosos dos meus bosques
e a inocência dos meus gestos alegres.
Embalarei teu sono calmo sobre as ramarias
com o acalanto notívago de uma canção
materna.
Eu sou aquele que faz reflorescer a erva nos
caminhos,
o que traz esta doce ternura aos teus olhos
aflitos
e o que te comove como estranha religião.
Eu sou o feliz mensageiro dos momentos alados
e na grande noite sobre os cutiteiros
floridos
te oferecerei meus dons, a luz das minhas
estrelas
e te amarei grande e luminoso como os mortos.
Sobre a tranquilidade dos meus rios
encantados
serei tão manso que te oferecerei apenas
tenras flores
e as palavras felizes que dissemos na
infância.
BARATA, Ruy Guilherme. Anjo dos abismos
(poesias). Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. p.17-19, 25-29, 37-38
> Anjo dos abismos é o primeiro livro do poeta
paraense Ruy Barata, publicado em 1943. Além de poeta, Ruy Barata foi político,
advogado, professor e compositor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
Outros contatos poderão ser feitos por:
almaacreana@gmail.com