Leila Jalul
Se eu fosse autoridade na área educacional,
em definitivo, baixaria um decreto proibindo que no primeiro dia de aula,
apenas para matar a má vontade de alguns professores, fosse pedida a eterna
redação "Minhas férias". Proibiria outras coisinhas banais que se
repetem ano após ano, deixando crianças com o emocional no chão. Porém, como
não sou autoridade e nunca serei, apenas sugiro. Ocorre com frequência ver
crianças órfãs tendo que desenhar corações e cartões para pais e mães que não
existem mais. Não por insensibilidade dos professores, mas muito por orientação
da própria escola. Turmas grandes, salários baixos e outras dificuldades não
deixam às vezes nem que o próprio professor se aperceba desses
"pequenos" detalhes.
Volta às aulas: tema livre para as redações.
Dia dos pais e das mães, atividades que envolvam quem os tenha, ou não. Essas
seriam algumas das providências que eu tomaria. Sempre deixo claro o respeito
às exceções. Foi na terceira ou quarta série do antigo primário que me vi numa
saia justa. O dia anterior tinha sido uma desgraceira só, pior do que os outros
dias. E lá estava eu com o cabeçalho prontinho. Caderno de papel almaço
pautado, letra bonita treinada no livro de caligrafia. O tempo passando e não
saía uma linha. Roía a cabeça do lápis, quebrava a ponta de tanta força, de
tanto ódio, apontava, testava. Roía de novo o lápis de pau-brasil, mastigava um
pouco de grafite, cuspia a seco. E nada. Enquanto isso, as meninas iam de vento
em popa. Umas contavam da Fazenda Araripe, outras de pescarias, outras de
passeio de batelão, festas de aniversário, Natal... E eu, nada! Até que resolvi
não ficar para trás e mandei ver.
Redação
Minhas férias
Minhas férias foram iguais às outras. Nada de novo. Mamãe
trabalhando que nem doida na loja de vovô. Irritada, quase todos os dias me
dava uma surra porque eu não tinha feito o que ela mandava. Esqueci de cortar
os gravetos para acender o fogareiro e, quando fui buscar, tinha chovido e os
paus estavam todos molhados. Também esqueci de tirar a roupa do varal e pegou
chuva por dois dias seguidos. Ficou fedida, com cheiro de manipueira azeda.
Apanhei de novo, desta vez com o pedaço de taquara que levantava o varal,
porque, além de molhar a roupa, ainda arrastou no chão e melou de barro. Outro
dia foi horrível, papai chegou de porre, como terno de linho todo manchado de
batom das quengas da 6 de Agosto. Mamãe quase deu nele.
- Vagabundo! A estas horas? Ele, nem ligava, e só dizia:
- Calma, mulher. Calma.
Deitou com os pés sujos de lama na colcha bordada e
dormiu. Foram assim quase todos os dias de minhas férias. Mas, ontem, ontem foi
pior. Teve uma briga na esquina lá de casa. Briga feia! A Chica Tolete,
possuída pelo bicho preto (não falo o nome dele), subiu num caminhão e foi
preciso chamar a polícia. Ela bateu nuns dez soldados até passar o encosto e
ser presa. Foi assim. E hoje estou muito feliz por ser o primeiro dia de aula.
Reli, para ver se faltava alguma coisa. Mas,
para falar a verdade, fiquei com vergonha. Amassei o papel e escrevi outra.
Redação
Minhas férias
Minhas férias foram
ma-ra-vi-lho-sas! Passeei muito, pesquei, andei de barco no açude do pai da
Laélia, Seu Joaquim Francisco, lá na Estação Experimental. Tomei muito banho
com os meninos. E vovó ainda deixou eu usar uma bombacha da minha irmã. Depois
do almoço, que foi buchada de carneiro, Dona Joanita mandou eu brincar com as
bonecas de pano da Savitre, irmã da Laélia. Num domingo, papai, homem direito,
que não fuma, não bebe, não joga e nem é namorador, me pegou pela mão e me
levou para a praça do Quartel. Conversamos muito. Depois me prometeu uma boneca
no Natal. Uma que fala, ele disse. Não ganhei a boneca, mas tá bom. Sei que ele
é um homem de palavra, e, quem sabe, um dia dá. Não é mesmo?
Minha mentira de nada adiantava. A professora
Iranira sabia, e como sabia, que a verdadeira redação estava amassada no chão.
Ganhei um “ÓTIMO!” de menção. E uma piscadela de aprovação.
JALUL, Leila. Suindara. Fortaleza: Expressão
Gráfica e Editora Ltda, 2007. p.52-54
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