Inês Lacerda Araújo
Para o senso comum, ironizar equivale a
caçoar, a gozar de algo ou de alguém, a conotação do termo é negativa.
Para a filosofia, a ironia tem outro alcance
e outra conotação. Toda situação pode ser reelaborada pelo ângulo da ironia, de
modo a assumir certa distância que um olhar perquiridor e atento, que permite a
reflexão e o questionamento, abalam o que já sabia, o que se tinha como certo e
seguro. O ironista pergunta, será assim mesmo? Você não conseguiria ver de um
modo novo, diferente? Aquilo que você considera assentado, por acaso não
poderia ser abalado, modificado, reinventado?
E a resposta do filósofo irônico será sempre
SIM!
A ironia de Sócrates parte da introspecção,
da descoberta de seu eu, atingir pelo olho interior o que há de divino dentro
de si, a sua sabedoria. Aquele que crê saber, nada sabe, pois acha que já
conhece tudo. Aquele que diz nada saber é realmente sábio, pois este não crê
saber o que ainda ignora. Ou seja, não se trata de um jogo de palavras e sim de
um ponto de partida: para chegar à sabedoria, é preciso reconhecer a
ignorância, livrar o espírito dos erros e prosseguir no caminho da verdade. A
ironia leva ao desmonte das ideias prontas, a ironia tira o chão dos que se
creem superiores. Sócrates conduz a argumentação fazendo com que a pessoa se
confronte consigo e com tudo o que considera como correto e verdadeiro sem
exame prévio, a ponto de essa pessoa se irritar; o próximo efeito é a pessoa se
libertar das opiniões e abrir-se para novos ensinamentos.
Como Sócrates tinha muitas dúvidas, ele
instigava dúvidas nos outros, e, pelo diálogo ia modificando as noções antes
aceitas; desse modo o próprio filósofo ia construindo o conhecimento, ele como
que pavimentava o caminho para a vida reta e virtuosa, que é a finalidade da
sabedoria.
Voltaire ironizou por meio do recurso ao
absurdo, ao non sense e à
contradição: dizer o contrário do que se quer comunicar, mesmo correndo o risco
de não ser compreendido. Aliás, quem não compreende o significado de um dito
irônico, falta-lhe informação, leitura, cultura. E talvez com pessoas muito
ingênuas ou pouco informadas, o esforço de ironizar não compense.
E ironizar compensa? Não será uma ironia que
a própria ironia desloque a si mesma?
O riso silencioso do filósofo, a que se
referia Foucault, é irônico. Apontá-lo como estruturalista ou como filósofo da
vanguarda, ou como um guru que tem resposta para todas as questões, a isso tudo
a resposta vem num tom irônico. Se me consideram positivista, disse ele, sou um
"positivista feliz".
Há todo um jogo de significações com ida e
volta a contextos para que a ironia seja interpretada corretamente. Ironia: mas
como assim, "corretamente"? E o que dizer, ironicamente, do que se
considera como correto? A quem ou a que atribuir correção, sem tropeçar na
ironia?
E a ironia das ironias? Viver para morrer...
* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.
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