José Ribamar Mitoso
(Jornalista) Lima Silva, quem matou Eduardo
Ribeiro? Perguntou a seco Waldemar Scholz, o barão alemão da borracha.
Esta pergunta, formulada ainda no segundo
capítulo, move todo o enredo e toda a trama do romance Teatro Amazonas, do escritor Rogel Samuel. Embora os bastidores
políticos da construção deste teatro de ópera na floresta seja o mote da
narrativa, é esta trama monarquista e escravocrata para matar Eduardo Ribeiro
que, no fundo, mais interessa na obra.
Na verdade, são duas tramas que se encaixam:
os bastidores da construção do Teatro Amazonas e a conspiração que assassinou
Eduardo Ribeiro.
Quem foi o melhor governador do Amazonas no
século XIX: José Paranaguá ou Eduardo Ribeiro? Qual o mais importante dos dois:
o que iniciou ou o que concluiu a construção do teatro? Por que monarquistas e
escravocratas queriam matar (e mataram) aquele que foi o primeiro governador de
Estado e o primeiro senador negro da República brasileira? O que é história e o
que é ficção na trama do romance? O assassinato do construtor da Manaus Moderna
foi político ou passional? Após uma macabra trama para assassiná-lo, o
jornalista Lima Silva matou Eduardo Ribeiro apenas porque o Pensador comeu a
Marinalva?
Durante a narrativa, através do narrador e através
da voz de uma autoridade pública da época, são feitos alguns comentários sobre
as obras de governo dos dois governadores do Amazonas.
Sobre José Paranaguá: assumiu o governo do
Estado em 1882, ainda como agente indicado pela monarquia, e é descrito por uma
autoridade pública como o “melhor governador da história do Amazonas”. Entre
outros feitos, “…por ter lançado o projeto do Teatro Amazonas … por ter criado
a Biblioteca Pública e o Museu Botânico… por ter criado a infraestrutura para o
ciclo da borracha … por ter apoiado os professores, as ciências, as letras e as
artes …”. A lista é longa.
Sobre Eduardo Ribeiro: segundo o narrador,
governou o Amazonas, eleito, já no período republicano, e em seu segundo
mandato, que iniciou em 1893, construiu a Manaus Moderna. O narrador informa ao
leitor que Eduardo Ribeiro planificou a cidade, aterrou igarapés, construiu
muitos edifícios públicos, praças e monumentos, criou um moderno sistema de
saneamento e de abastecimento de água, fez contenções, organizou os transportes
urbanos, as linhas dos bondes, a iluminação pública… A lista também é longa.
Porém, não são as obras inanimadas que mais
chamam a atenção no romance. Melhor que todas elas, a animação da vida social e
a animação da vida individual de Marinalva é que encanta.
O narrador nos informa que Marinalva era,
inicialmente, amante de Lima Silva e o enlouquecia. Era “cabocla, pequena,
leviana, sensual… e até perto dos sessenta anos continuou uma mulher atraente e
sexy… muito elegante, bem-vestida, no rigor da moda de Paris e, ao contrário
das demais caboclas naquela idade, continuava em forma”. Mais ainda: (…)
“Depois do terceiro uísque, (Marinalva) perdia a compostura, chegava a “flertar”
com todos os homens. Marinalva “traia Lima Silva até com os trapicheiros!”.
Contudo, “...junto dela, (Lima Silva)
perdoava tudo. Era capaz de beijar seus pés, que, alias eram bonitos… Tinha os
cabelos negros, lisos, brilhantes, a pele bronzeada, os seios pequenos. Olhos
de índia, de onça, a cor variava pelo amarelo-ouro-esverdeado, cor indefinível,
falsa, perigosa. Ela dizia que tinha vindo de Amatari. Não tinha documentos.
Quando Lima Silva mandava fazer os documentos dela, Marinalva os perdia. Silva
a cobria de presentes, roupas e joias, dizia que queria casar-se com ela,
abandonar a esposa, e de fato seria capaz de tudo para ficar com ela. Ela se
ria, jurava que sim, e no dia seguinte sumia na orgia da noite, voltava bêbada
e louca na manhã seguinte para aquela casa que Silva tinha alugado para ela, na
Cachoeirinha. Silva ameaçava abandoná-la e deixava de vê-la. Mas quando
Marinalva estava sem dinheiro aparecia no Foro, ou na Câmara, ou mesmo na porta
da casa dele. Ameaçava fazer escândalo. Silva segurava o seu braço e a tirava
dali, e tudo acabava na cama, ela gemendo, ele extasiado de prazer e de genuíno
amor. Não, não tinha cura. Marinalva, ela dizia que se chamava assim. Mas como
tudo nela era possível, ele não sabia se era verdade”.
Certa vez, na casa d’O Pensador, na frente de
Lima Silva, (…) “Marinalva jogava todo o seu charme em cima do então
ex-governador Eduardo Ribeiro. Em dado momento, encostou sua perna por baixo da
mesa na dele. Ele delicadamente a afastou. Como ela repetiu alguns minutos
depois, ele deixou e com a mão acariciou-a por entre as pernas, curvando-se
sobre o papel que o marido dela estava atentamente lendo”.
“Lima Silva nada via ou fingia não ver”.
A partir deste ponto, o narrador começa a
moldar a trama do romance de tal modo que a conspiração política para matar
Eduardo Ribeiro começa a se misturar com vingança passional. A partir daí, o
leitor vai ter que ser bem esperto para compreender que o plano da elite
monarquista e escravocrata para assassinar um líder negro republicano e
abolicionista começa a contar com fatores extras.
É claro que Eduardo Ribeiro comeu Marinalva e
é claro que Lima Silva assassinou Eduardo Ribeiro, mas não é nada claro sobre
quem armou e sobre quem estimulou Lima Silva.
O tempo cronológico é o final do século XIX e
início do século XX.
O tempo social é a transição da monarquia
para a República no Estado do Amazonas, unidade federada do Brasil.
O tempo narrativo é um jogo temporal
alucinante, que embaralha passado, presente e futuro, em uma trama capaz de
“baratinar” a cabeça de um leitor conservador, acostumado com a narrativa
cronológica e linear do romance tradicional. A narração, em certo momento,
chega no futuro, nos anos 90 do século XX. É preciso saber ler.
O fluxo narrativo é veloz, sintético e
envolvente. Do mesmo modo que seu preciosismo morfossintático: as frases, os
diálogos diretos e as descrições estão muito bem encaixados na fluidez do fluxo
narrativo. São precisas, rápidas, simples e melódicas.
Verdade que nas descrições faltam árvores,
plantas, pássaros, animais, sons, igarapés, rios, fatos naturais e presentes na
vida social, especialmente no lazer e na moradia Amazônica de então – ou de
“dantanho”, como se dizia na época.
Ao contrário, contudo, há descrições
brilhantes de detalhes arquitetônicos, urbanos e estéticos da vida social.
Estas descrições da vida urbana de Manaus, possibilitam o refinamento da
percepção do leitor, que passa a entender melhor a complexa cidade de cinquenta
mil habitantes, encravada no coração da floresta Amazônica. Do colar de
esmeralda art-nouveau ao decote da
mulher de um barão da borracha, do detalhe rococó da mesa da varanda do Barão
Waldemar ao detalhe da marca “do champanha La
Grand Dame Veuve Clicquo” utilizada nas orgias. Nada escapa ao olhar
treinado do narrador.
Contudo, de fato, é o conteúdo, especialmente
o preciosismo da pesquisa histórica, e os fatos narrados, o que mais fascina
neste romance ou, pelo menos, que mais fascinou este leitor modesto e
desavisado.
Assim como a curiosidade sobre a vida de
Marinalva!
*José Ribamar Mitoso é escritor, dramaturgo e
professor da UFAM.
> Artigo publicado na página de Rogel Samuel, acesse aqui.
obrigado,amigo, por esta publicação
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