Humberto de Campos (1886-1934)
É nas ilhas, no centro, alta noite. Deitado
Em palhas de boçu, num mísero casebre,
Sem conforto, sem luz, sem uma alma a seu
lado.
Soluçando de sede e tremendo de febre,
De um longe seringal da selva americana
Que nem mesmo, sequer, um córrego percorre,
E onde a voz que se erguer não tem resposta
humana,
– Um jovem seringueiro, empaludado, morre...
Tudo é triste em redor da barraca pequena.
Apenas o trilhar dos insetos na mata;
A brisa; e um sapo-boi, que, na noite serena,
Berra a angústia que o aflige, a paixão que o
arrebata,
Ao fitar uma estrela – uma quieta falena
De ouro, que, do alto do céu, no paul se
retrata.
O jovem seringueiro, a arder de febre, escuta
O barulho que, em roda, a Natureza espalha:
Farfalham buritis; como em tímida luta,
Doce, aflita, a bolir, a meter-se entre a
palha
Do teto da barraca, e entre os ramos, a brisa
Em segredo murmura, e estremece, e farfalha,
E soluça, e se escapa; e entre as folhas
desliza...
E ele, ardendo de febre, e em delírio, ouve
tudo...
Sente sede. Em redor, debalde a mão tremente
Busca, inquieta, a apalpar, o pote antigo e
rudo,
Onde pensa encontrar a água que o dessedente.
E, apalpando, deitado, o canto da barraca,
Com a mão grossa a tatear pelo soalho vazio,
A um canto, junto à palha, a mão tremente
estaca,
E apalpa um pétreo objeto impassível e frio.
Aos seus olhos, em luz, a alegria se eleva.
E trazendo, a tremer, o pétreo corpo à vista
– Que ardente se derrama e se apaga na treva
–
Põe-no junto do olhar... Na ilusão da
conquista.
Busca levá-lo ao lábio; e sorrindo de gozo,
Na ânsia louca da febre ao lábio descerrado
Leva-o, morde-o chorando, e, convulso,
sequioso,
Com mais febre a tremer, deixa-o cair ao
lado.
É um búzio... E o frio búzio, ao tombar, fica
unido
À cabeça febril do caboclo, ficando
Toda a concha sonora em frente ao seu ouvido.
E o jovem seringueiro, em delírio, escutando
O secreto rumor do búzio, se debruça
Mais sobre ele; e estremece, e abre os olhos,
notando
Que, ali dentro, alguma alma, em silêncio,
soluça.
E une-o mais, junto ao ouvido. A secreta
harmonia
Que o ouve fá-lo surpreso. Um clarão vago e
leve
Aclara-lhe a memória. E ele vê, na sombria
Noite do seu delírio, o delírio que teve.
E recorda-se: – É o búzio... E ainda
tremendo, tonto
Pela febre, da palha ao medroso farfalho,
Recorda que com ele, às três horas em ponto,
Chamava o companheiro ao insano trabalho.
Recorda, reconhece... A mente se lhe aclara:
É a concha que lhe lembra os dias em que,
incerto,
Viera do alto sertão – o búzio que encontrara
Quando a primeira vez vira as ondas de perto.
Põe-no, então, junto ao lábio; e, soprando,
sonora,
A alma, no último esforço, a voar de fronde
em fronde,
Manda, no som búzio, a vibrar mata em fora...
E, apenas, muito longe, o eco, triste,
responde...
Leva-o de novo ao ouvido, e, de novo,
delira...
Delira e sonha. E ao som, aos rumores que
sente,
Aos rumores do búzio e ao som daquela lira
Que anda a rir e a chorar pela noite
dormente,
Voa, na asa do sonho, através da distância,
A uma terra longínqua onde o céu é inclemente
E onde alegre viveu sua primeira vivência.
E ei-la à vista: É o sertão amplo e ondulado,
cheio
De serrotes azuis e ampla várzea cinzenta:
É um fantástico mar petrificado em meio
De uma hora de cruel e indizível tormenta.
E, ao longe, um pouco além de uma doce e
pequena
Povoação sertaneja, onde o campo se acaba,
Estendida, azulada, entre a névoa serena,
A fechar o horizonte, ergue-se a Ibiapaba.
É nos fins do verão: tudo é plácido e feio.
Inundado de luz, tudo é quieto e tristonho...
Não se vê cintilar um só açude cheio:
Tudo o sol reduziu a este quadro de sonho...
E eis o inverno, afinal!... Pelos campos
macios,
Tudo mostra o esplendor das eternas farturas:
A cantar no correr dos riachos vadios,
A sorrir no verdor das espigas maduras.
Pelo campo sem fim a vista erra e se perde.
É quando o Ceará pelo céu se não troca:
O sertão ondulado é um largo oceano verde
Do pé da Serra Grande ao pé da Meruoca.
E vê tudo... A tremer, entre o verde
infinito,
E entre a névoa que ao sol se dissipa e
esvoaça,
Revê tudo o que viu: a Sant’Ana, o Mosquito,
A Lapa, o Pacujá e a igrejinha do Graça...
E, entre o mato, a correr, bulhentos e
sombrios,
Sobre o dorso a levar largos flóculos
brancos,
Descem, turvos, rocando, os riachos e os
rios,
Com línguas de água escura a lamber os
barrancos.
Olha: conhece-os bem: é o Jaibara que ronca,
E, no inverno, a espumar, desce da Ibiapaba.
É o outro o Acaraú, que com ele se
encontra...
Brame aqui o Jabota; canta adiante o
Ipuçaba...
O verde carnaubal bate os leques à brisa...
Tudo vibra em redor pelo campo empastado:
Ao sereno rumor dum riacho que desliza
Há balido de ovelha e mugidos de gado...
E, ao barulho da concha, o farfalho das matas
Ouve em festas; e o olhar toda a distância
vence:
E no ouvido, e no olhar, sente em carícias gratas
Todo o imenso esplendor da terra cearense...
De repente, porém, tudo fugir parece.
Fria, a noite, em redor, entre as palhas,
suspira.
E o jovem seringueiro, em delírio,
estremece...
Deixa o búzio cair... treme de novo... e
expira...
Depois... volta a quietude à barraca pequena.
Apenas o trilar dos insetos da mata;
A brisa; e o sapo-boi, que, na noite serena,
Barra a angústia que o aflige, a paixão que o
arrebata,
Ao fitar uma estrela – uma quieta falena
De ouro, que, do alto céu, no paul se retrata...
CAMPOS, Humberto de. Poesias Completas. São Paulo: Opus, 1983.p.167-172
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