Isaac Melo
Há algum tempo vinha namorando este livro: “São
coisas do Acre...”. Só agora pude adquiri-lo de um sebo do Rio de Janeiro. É seu
autor Nelson Correa de Oliveira, cuja única informação que obtive dá conta de
que ele era acreano, provavelmente de Cruzeiro do Sul. O livro foi publicado em
1944, no Rio de Janeiro, pela Gráfica Laemmert Limitada. O livro traz uma carta,
à guisa de prefácio, de Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993), grande
historiador da Amazônia e ex-governador do Amazonas (1964-1967), que diz: ““São
Coisas do Acre...”, meu caro confrade, vale evidentemente pelo abundante
documentário que encerra à volta do grande drama social que as populações
nordestinas vêm escrevendo na Amazônia. Filtrando os mil episódios da
instalação do homem no seio agreste acreano, seus choques com a selva, com as
águas, com as diversidades econômicas que o novo ambiente lhe apresenta, você
riscou flagrantes magníficos, depoimentos preciosos. Seus panoramas não têm
retórica mentirosa. (...) O Acre, nos seus seringais, nas suas desventuras
humanas, nos altos e baixos do seu processo econômico, nos seus episódios de
brasilidade conquistada a sangue e amor, encontrou em você o exegeta sincero. Romancista
ou cronista, em seu livro encontrei um riquíssimo documentário social, insisto,
que o Brasil precisa conhecer em toda sua extensão.”
No cômputo geral das obras que retratam o
viver dos seringais o livro é ainda de certa forma original, haja vista que a
maior parte dos livros posteriores nos dá a impressão que se repetem, mudando
apenas os personagens num mesmo pano de fundo e enredo. Nelson Correa nos
oferece um retrato esmerado do viver dos seringais acreanos até a década de
1940, demonstrando ter conhecimento de causa daquilo que escrevia, sobretudo,
pelo modo como nos apresenta o linguajar seringueiro, em suas nuances tão
próprias. O livro é ambientado na região do Juruá-Mirim, afluente do Rio Juruá,
e gira em torno da família do seringueiro João Florêncio e Teresa Assunção.
Assim se inicia “São coisas do Acre...”:
“A madrugada começa a apagar as estrelas que
o luar tornara esparsas pelo céu. Flutua no ar um vento frio. O rio reflete a
sombra da mata e tem a imobilidade de um espelho fosco. A canoa marca na
estrada das águas o traço sinuoso da sua passagem, ao ritmo cadenciado e
vigoroso dos jacumãs. Aspira-se o bafo morno do rio que os remos fazem
espreguiçar ao despertarem-no do sono, dessa esplenderosa noite tropical, e,
ao mesmo tempo, sente-se o hálito perfumado da mata que o vento trás numa
cerração leve, tênue. A lua branca espreita por entre a folhagem das árvores e
desafia a alvura das praias.
– Espia, Sinhazinha, a barraca do Mecenas! Ele
deve estar, também, a caminho da festa, porque não se enxerga a luz na casa,
nem o fogo do borralho.
Um galo canta e um cão que despertou ao
barulho dos remos ladra, soturnamente. A canoa se afasta. A barraca é uma
silhueta, ao longe. As remadas pausadas e fortes fazem suceder, uma após outra,
as voltas do rio.
A mata toma forma e cor com o dia que nasce. A
natureza toda desperta. As araras estridentes levantam-se do poleiro e cruzam o
espaço em busca do buritizal. Longe, muito longe, ouve-se o regougo das
guaribas. Os saguis, aos pinchos nos galhos da ingazeira, saboreiam-lhe os
frutos. E o dia vem cheio de luz, de música e de cores, neste pedaço exuberante
da planície amazônica.”
OLIVEIRA, Nelson Correa de. São Coisas do
Acre.... Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Limitada, 1944. p.11-12
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