Friedrich Nietzsche (1844-1900)
De tudo escrito, amo apenas o que se escreve
com o próprio sangue. Escreve com sangue: e verás que sangue é espírito.
Não é coisa fácil compreender o sangue
alheio: eu detesto os que leem por passatempo.
Quem conhece o leitor nada mais faz pelo
leitor. Mais um século de leitores – e até o espírito federá.
Que todo mundo possa aprender a ler, a longo
prazo isso estraga não só a escrita, mas também o pensamento.
Outrora o espírito era Deus, depois se tornou
homem, agora está se tornando plebe.
Quem escreve em sangue e em máximas não quer
ser lido, quer ser aprendido de cor.
Nas montanhas, o mais curto caminho é aquele
entre um cume e outro: mas para isso tens de ter apenas pernas compridas.
Máximas devem ser cumes: e aqueles a quem são ditas devem ser grandes e altos.
O ar fino e puro, o perigo próximo e o
espírito pleno de alegre maldade: essas coisas combinam.
Quero ter duendes a meu redor, pois tenho
coragem. A coragem que espanta os fantasmas cria seus próprios duendes – a
coragem quer rir.
Já não sinto como vós: essa nuvem que vejo
abaixo de mim, essa coisa negra e pesada da qual eu rio – justamente isso é
vossa nuvem de tempestade.
Olhais para cima quando buscais a elevação.
Eu olho para baixo, porque estou elevado.
Quem, entre vós, pode ao mesmo tempo rir e
sentir-se elevado?
Quem sobe aos montes mais altos ri das
tragédias do palco e da vida.
Corajosos, descuidados, zombeteiros,
violentos – assim nos quer a sabedoria: ela é uma mulher, ela ama somente um
guerreiro.
Vós me dizeis: “A vida é difícil de
suportar”. Mas por que teríeis vosso orgulho de manhã e vossa resignação de
noite?
A vida é difícil de suportar: mas não sejais
tão delicados! Todos nós somos belos asnos e asnas.
Que temos em comum com o botão de rosa, que
estremece porque sobre o seu corpo há uma gota de orvalho?
É verdade: amamos a vida por não estarmos
habituados à vida, mas ao amor.
Há sempre alguma loucura no amor. Mas também
há sempre alguma razão na loucura.
E também a mim, que sou bem-disposto com a
vida, parece-me que borboletas e bolhas de sabão, e o que há de sua espécie
entre os homens, são quem mais entende de felicidade.
Ver e esvoejar essas alminhas ligeiras,
tolas, encantadoras e volúveis leva Zaratustra às lágrimas e ao canto.
Eu acreditaria somente num deus que soubesse
dançar.
Quando vi meu diabo, achei-o sério,
meticuloso, profundo e solene: era o espírito de gravidade – ele faz todas as
coisas caírem.
Não com ira, mas com riso é que se mata. Eia,
vamos matar o espírito de gravidade!
Aprendi a andar: desde então corro. Aprendi a
voar: desde então, não quero ser empurrado para sair do lugar.
Agora sou leve, agora voo, agora me vejo
abaixo de mim, agora dança um deus através de mim.
Assim falou Zaratustra.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra:
um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.40-41
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