Cassiano Ricardo (1895-1974)
I
O beijo com que a tarde
me ensanguenta a boca.
Fingirei que o não sinto?
Grandes borboletas,
que só nascem a esta hora,
pousam de asas fechadas
no meu labirinto.
No desmoramento
dourado do dia
a grande ave absurda
do silêncio gorjeia
mas não sei em que árvore.
II
Já na primeira infância
me roubaram o seio,
alvo, redondo, cheio,
em que eu bebia o leite
da ignorância.
Agora bebo o sangue
da filosofia.
Sangue rubro em que molho
o pão de cada dia.
E, em lugar da rosa,
resta-me o pedregulho
onde nasce o país
dos objetos sem uso.
País que fica ao norte
do imediatamente.
O país concluso.
Não existem mais frutos
em nenhum pomar
que já o meu paladar,
hoje corrompido,
não conheça – sabido.
Não há seda ou cacto
que já a minha mão
não adivinhe, logo,
experiente ao contacto
das coisas corpóreas
e das suas arestas
ou frestas.
Minha mão é um símbolo.
Ontem, rica – convexa.
hoje pobre – côncava.
III
Lembro-me, ainda hoje:
o diabo me chamou
a um canto da parede
em capcioso gorjeio,
e aí me ensinou tudo.
A primeira palavra
que aprendi a escrever
no beco da Matriz
foi um nome feio.
E quando era manhã
já eu sabia o segredo
da noite, ao meu ouvido,
que a serpente da fábula
me ofereceu, dentro
do fruto proibido.
Tinha eu muita sede.
Deu-me a vida a água
da mágoa.
Água terrível, trago-a
dentro de mim, orvalho
dentro de um baralho.
Até que escrevi “ciente”
no papel que me trouxe
o oficial de justiça
e fiquei então ciente
de que havia a injustiça.
Fiquei ciente de tudo.
(A mais triste forma
de saber é estar ciente.)
IV
O mundo me ensinou,
me cuspiu no rosto,
me fez triste e sábio.
E em meio ao triste pão
que minha mão amassa,
em meio à convicção
que substituiu o êxtase,
em meio à mais abjeta
condição de vida,
resta-me, só, a ironia
da poesia.
Resta-me só esta graça
de ser poeta.
Poesia! única coisa
que, depois de sabida,
continua secreta...
RICARDO, Cassiano. Melhores Poemas. Seleção Luiza Franco Moreira. São Paulo: Global, 2003. p.108-112
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