Hermann Hesse (1877-1962)
— A comunidade — continuou dizendo — é uma
coisa muito bela. Mas o que vemos florescer agora não é a verdadeira
comunidade. Essa surgirá, nova, do conhecimento mútuo dos indivíduos e transformará
por algum tempo o mundo. O que hoje existe não é comunidade: é simplesmente o
rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia
entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de
intelectuais... E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo
consigo mesmo. Têm medo porque jamais se atreveram a perseguir seus próprios
impulsos interiores. Uma comunidade formada por indivíduos atemorizados com o
desconhecido que levam dentro de si. Sentem que já periclitaram todas as leis
em que baseiam suas vidas, que vivem conforme mandamentos antiquados e que nem
sua religião nem sua moral são aquelas de que ora necessitamos. Durante cem anos
a Europa não fez mais do que estudar e construir fábricas! Sabem perfeitamente
quantos gramas de pólvora são necessários para se matar um homem; mas não sabem
como se ora a Deus, não sabem sequer como se pode passar uma hora divertida.
Observa qualquer uma dessas cervejarias estudantis. Ou qualquer dos lugares de
diversão que a gente rica frequenta! Que espetáculo mais desolador... De tudo
isso não pode redundar nada de bom, meu caro Sinclair. Esses homens que tão
temerosamente se congregam estão cheios de medo e de maldade, nenhum se fia no
outro. Mantêm-se fiéis a ideais que já não existem, e atacam, furiosos, os que
tentam erigir outros novos. Sinto o início de graves conflitos que não podem
tardar a surgir. Já não podem tardar, crê-me. Naturalmente, não irão “melhorar”
o mundo. Quer os operários assassinem seus patrões ou quer a Rússia e a
Alemanha disparem uma contra a outra, isso redundará apenas numa mudança de
proprietários. Mas tampouco serão completamente inúteis. Revelarão a falência
dos ideais de hoje e forçarão a derrocada de toda uma série de deuses da idade
da pedra. Este mundo, tal como é hoje, quer morrer, quer aniquilar-se e
aniquilar-se-á.
HESSE, Hermann. Demian. Tradução Ivo Barroso.
Rio de Janeiro: Record, 2000. p.157-158 (*Título nosso)
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