quarta-feira, 29 de outubro de 2014

VIAGEM SOBRE O ESPELHO

Cassiano Ricardo (1895-1974)


Na grande tarde, que é um arco
vermelho
oscila o barco
sobre o espelho.

Nesse barco navega o meu rosto.
O meu rosto de tripulante
olha o meu rosto de náufrago
no espelho.

A viagem é longa. A paisagem
também oscila
entre o meu mundo em viagem
e a água tranquila.

Tudo é oscilação na tarde.
A água como que balança
em cada curva
entre o futuro e a demora.

Depois caminha oscilando
entre as duas margens opostas
como uma pergunta: até quando?
entre duas respostas.

Mas a oscilação mais grave
é a da viagem sobre o espelho.
Em que cada um de nós navega
com dois rostos.

Tripulante sobre o barco
e náufrago no meu reflexo
sob a tarde, em forma de arco,
vou eu, cada vez mais perplexo.

O meu rosto que se debruça,
vê o outro, caído ao fundo.
E sente, através do outro,
o abismo que aos meus pés carrego.

Antípoda de mim mesmo
entre mim e a minha mágoa
levo os dois rostos a esmo
um em meu corpo, outro n’água

O que, por força, conduzo
preso ao corpo
é o que não naufragou ainda.
O outro é o que perdi para sempre.

Viagem dupla, quase sem alvo,
em que o meu barco desliza,
entre o que há em mim de salvo
e o que de salvação precisa.

Na grande tarde, que é um arco
vermelho
oscila o barco
sobre o espelho.


RICARDO, Cassiano. Melhores Poemas. Seleção Luiza Franco Moreira. São Paulo: Global, 2003. p.66-68

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