quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

MISS BOMBRIL

Leila Jalul


Foto: Vássia Silveira
Se Neruda viveu, também eu confesso que vivi. Talvez não com a mesma qualidade, mas vivi. Revendo a trajetória, não hei de afirmar, em hipótese alguma, ter andado em linha reta e numa superfície plana. E os buracos, como negá-los se fundos eram?

Andei muito nestas seis décadas. A vida correu e as transformações foram galopantes e sentidas. Considero-me um ente que viveu momentos semelhantes aos homens das cavernas que acompanharam a passagem das pedras lascadas para as polidas. E não só isso. Passei pelo Henê Maru até chegar ao encantamento da chapinha e da escova definitiva, sem esquecer a escova de chocolate branco. Andei pelo arcadismo até chegar ao concretismo impiedoso. Valsei valsas tristes até assistir a cachorrada do funk das cachorras. E me pergunto: quanto tempo passou do rádio amador, do velho PX, até à internet? Quem quiser que me leve a sério, o certo é que fui do mimeógrafo alcoolizado ao estêncil eletrônico em muito pouco tempo, até que me fosse instalada uma impressora que faz dez cópias por segundo.

Na música soube apreciar muita gente boa. Pixinguinha, Cartola, Clementina de Jesus, Noel e tantos outros pouco lembrados. Falar das belezas diferentes das composições de Ataulfo Alves e de meu Cazuza não é problema. Coisas boas são perenes e não deveriam ser medidas com simploriedade. Cazuza não elimina Ataulfo, porquanto ambos são poetas de enormes qualidades. O que me mata é o que morre na memória da ingratidão. O que me desgasta é ver a morte repetida do que deveria estar vivo e pulsante. Viva Ataulfo! Viva Cazuza! Viva Cruz e Souza! Viva Saramago! Viva Patativa do Assaré!

Perambulando e preambulando, gastando letras e sofismando, quero mesmo é falar de Rossycléia, filha de Rossyni e de Cléia Maria. Preciso comparar mais o ontem e o hoje até chegar ao fato bem passado ou al dente, ainda que seja com esta minha forma embolada de escrever. Vamos lá!

Todos sabemos que virgindade é coisa de antanhos e de pouca aplicação prática na atualidade. Parodiando alguém, o beijo na boca é coisa do passado. A moda agora é namorar pelado. Nos idos e na peregrinação pelo tempo, também participei, pasmem, dos concursos de beleza. Através das qualidades de ser senhorinha da sociedade, fui, por umas poucas vezes, indicada a analisar os dotes das belezas do certame do Miss Acre e, como dizem presentemente, atuar como gerente operacional deste processo de empoderamento. Um dos principais e eliminatórios requisitos para a conquista do ambicionado título era a virgindade, além da graça e beleza, claro!

Num ano qualquer, décimo sexto ou sétimo de minha andança, estava eu, pela gerência, analisando os interiores e exteriores de Rossycléia e de mais outras seis pretendentes ao título do “Misacre”. Imaginem num consultório médico sete meninas à espera de serem vistas de baixo para cima pela ginecologista até receberem a constatação de que ali, na entradinha das salas de festas, havia uma pequena capinha de pele que desanuviava qualquer dúvida sobre o sim ou não. Loucura! Loucura! Frisson, frisson! Momentos tensos. Uma delas, tadinha, a primeira, não recordo se representante da terra do Abacaxi Gigante ou se a da Terra dos Náuas, tinha uma ziquizira na região alfandegária. Nada levava a crer ou a constatar que tivesse andado bolinando com alguma coisa reimosa e infectante.

Quem conhece a capa da graviola vai saber, com certeza, ao que me refiro agora. Quem não conhece a graviola, basta lembrar-se da “táuba de tiro ao ál-varo”, entendem? Umas pipoquinhas com relevos, declives e granulados, compreendem? Ó, Jesus!

A doutora nem ligou para isso. A pelezinha fundamental estava lá, intacta e reluzente. Feito o relatório, inconclusivo, por sinal, passou para o Carlão, public relation do certame. E não é que a suspeita dos estafilococos vazou? Caraio! Caraio! Caraio! Relações públicas ou língua de trapo? A segunda, a senhorinha Rossycléia, entrou triunfante. Ciente e consciente que nunca havia pecado con-tra a castidade, deitou na caminha, elevou as perninhas e, entre gritinhos, sai aprovada no todo e nas partes. Tudo em ordem no reino da Dinamarca. E assim com as demais. Exceto a ressalva à das bolhinhas, todas tinham lacre e certificado de garantia.

Na parte da tarde, no salão da Verinha, fechado e exclusivizado para as finalizações das maquiagens e cabelos, só fofocas e mais fofocas. Miss Capital, a favorita, cochichava com a Miss Sena Madureira, a terra dos Mandins. O que seria?

Quem não quiser esquecer o passado, que relembre agora. Os penteados de antigamente eram coques recheados de tudo o que fosse possível para aumen-tar o volume dos cabelos e camuflar a altura das baixinhas. Testas lisas até a metade da cabeça e, na parte posterior, enormes cachos tipo os das cabeleiras dos juízes da câmara dos lords. Lembraram? Hoje os cabelos são longos, lisos, fartos, pranchados. Umas modas vão e voltam. Outras desaparecem de vez. Graças aos céus!

Rossycléia era, se não me falha a memória, a de mais baixa estatura. Não foram poupados alguns roletes de Bombril até que atingisse os 1,65 cm desejáveis. Atenta e vigilante aos truques e ao comportamento das meninas, não pude deixar de ouvir um comentário da dona do salão sobre uma falha nas madeixas da moça. Um círculo sem cabelos e com um pruridozinho leve. A micose era conhecida por “tinha”. Não sei o nome certo dado nos compêndios médicos. No vulgar a gente também conhecia por “pelada”. Na hora de rechear a região da “pelada” houve uma preocupação. Ora, se aquilo purgava, como lascar Bombril, enrolar os cachos e sapecar laquê de goma arábica? No vale tudo pela beleza a obra foi executada. Rossycléia cresceu bastante. E desfilaria garbosa, graciosa e peituda. Faria o pivô direitinho. Pareceria gente!

Chega a hora do concurso. No estádio José de Melo, camarins, luzes, passarela, palco com instalação para a apresentação do conjunto Os Bárbaros, comissão julgadora presente e tudo o mais necessário para a noite inolvidable. Circo montado. Microfonias à parte, uma grande festa. Das Dores, num longuete preto e reluzente, cantava El Reloj, La Barca e outras emocionantes páginas do cancioneiro latino americano. O conjunto era bom demais da conta. Muita boleragem e baladas intercaladas com o repertório dos Beatles. Hey Jude... Tinha até pout-pourri de canções italianas. Cada candidata tinha sua música preferida para o desfile. Tanto quanto o livro de cabeceira das beldades era O Pequeno Príncipe, a música preferida era Aquarela do Brasil.

No final dos remelexos, da exibição dos trajes típicos, de gala e de maiôs Catalina, o veredicto: Miss Capital em primeiro lugar, Miss Terra do Abacaxi Gigante em segundo e Miss da Terra dos Náuas em terceiro. Para Rossycléia, o muito justo, merecido e gracioso prêmio de consolação de Miss Simpatia. E foi aí que começou a fuzarca. Rossycléia perdeu toda a simpatia que estampava. Aos berros, dizia que houve marmelada. Que merecia o segundo lugar, haja vista que uma das ganhadoras estava apinhada de doença da vida. Um absurdo, vociferava. Foi difícil conter os gritos da filha de Rossyni, mas, com tirocínio e bom senso de gerente da comissão organizadora, não poderia deixar que o certame fosse manchado com um escândalo. Contive o arranca-rabo. Numa linguagem mais contemporânea, abafei o caso.

Pajeei Rossycléia, cerquei-a de carinhos e compreensão. Acabei com a rebelião. Mandei que fossem retocados cabelos e maquiagens para as fotos oficiais. Misses, prefeitos e primeiras-damas deveriam sorrir desbragadamente para o fotógrafo Cornélio. Tudo deveria parecer, tanto quanto possível, flagrantes de felicidade da vida irreal. As fotos, após a revelação, eram enquadradas em pequenos slides, colocadas em monóculos (os maiores disseminadores de conjuntivite que conheci), separados por município e embiricicados num barbante. Os prefeitos mais ricos mandavam fazer álbuns, hoje apelidados de books. Era a forma de todos os munícipes saberem, em P&B e em colorido embaciado, como estavam suas representantes no grande dia. Uma trabalheira suada!

Não perdi Rossycléia de vista. Após a sessão de fotos parecia sentir uma grande dor na c’roa. Cheguei perto para saber. Era o Bombril que a incomodava, coisa que tratei logo de resolver, providenciando o desmanche dos cachos para a retirada do enchimento. O que vi não vou saber descrever com a mesma dor. A “tinha” ou “pelada” estava em carne viva. As mechas e fiapos do polidor de panelas grudaram no couro como se dele fizessem parte. Naquele momento a perda do título deixou de ser o problema maior. A dor era lancinante. A lesão exigia urgentes cuidados. Hora de acionar a médica do concurso, a mesma do atestado de virgindade. O que deveria ser uma grande noite terminou com a aplicação de muita água oxigenada volume 10 no cocuruto de Rossycléia, até que fosse retirado o último fiozinho de aço do Bombril. Pensem naquela água efervescente roendo os miolos da coitada... Quase chorei.

Não vejo e pouco ou nada sei sobre concursos de misses do agora. Não têm mais tanto glamour e nem atraem a opinião pública nacional como nos tempos da Martha Rocha. Acredito, no entanto, que a vaidade, os interesses políticos e os fuxicos de bastidores permanecem como dantes. Sem Bombril, naturalmente!

É, sei que Neruda não se meteu nessas canoas furadas. Mesmo assim, confesso que vivi.


JALUL, Leila. Das cobras, meu veneno. Edição independente, 2010. p.20-26

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