CHEGA ISSO PRA LÁ!
Leila Jalul
Dílson e Eunice formavam um casal pobre. Lá
em Lábrea, onde nasceram, trabalhavam em terras boas, de onde tiravam o
sustento. Não tinham filhos, só braços.
Mas a desgraça não manda aviso. Na morte do
pai de Dílson, seu irmão mais velho se apossa de tudo, forjando assinaturas,
encerrando a carreira de uma família unida. Unida e produtiva.
Maria Eunice, assim se chamava, passou a
trabalhar em minha casa, num dos períodos mais difíceis de minha vida. Tempo de
vacas magras. Tudo que ganhava, era destinado a tratamentos médicos com meu
garoto. Nem gosto de lembrar.
Maria assumiu às vezes de medianeira, de
controladora de gastos e conselheira de fala simples. Quando pensava não haver
mais solução, ela apresentava duas. Assim, de pronto! E dava certo.
Quando o cansaço e o desespero de mim tomavam
conta, ela dizia: "deita aí, fecha os olhos e descansa".
Depois que meu menino ficou curado, Maria e
Dílson aparecem grávidos. Minhas finanças estavam melhoradas e aluguei uma casa
de dois cômodos na rua Rio Grande do Sul. Assim, quando ele voltasse da fazenda
onde trabalhava, poderiam ter seus momentos de curtição e de alisados de
barriga, completamente sozinhos.
Nasceu o garotão, gordo, bonito e corado.
Tudo falso. Nasceu cardiopata, vindo a virar anjo com apenas três meses de
vida. Dílson estava na fazenda e tínhamos que avisar através das ondas sonoras
da Rádio Difusora. Redigi a mensagem e mandei fosse repetida tantas quantas
vezes necessárias: "Atenção Senhor Dílson Martins Correia, na Fazenda
Olhos D’água. Maria Eunice comunica, com pesar, o falecimento de Dilsinho,
ocorrido hoje de madrugada. Pede se conformar com a vontade de Deus e vir o
mais rápido possível".
Compramos o caixão azul, e, sobre o corpo,
uns ramos de flor de laranjeira e outros de resendá e boninas brancas. E
colocamos na mesa da sala/cozinha. Agora era esperar, eu, ela e uma vizinha de
nome esquisito. Fizemos o almoço enquanto o tempo dava o tempo da chegada do
pai. Vez por outra abraçava Maria, meio desajeitada e sentindo culpa pelo meu
menino ter sarado.
Na chegada, morto de fome, Dílson apenas tira
a camisa, enxuga o rosto suado e pede para almoçar. Nenhum carinho, nenhuma
lágrima. Sequer chegou perto do caixão azul sobre a mesa desforrada. Só teve
olhos para ver que o espaço era pequeno para colocar os pratos, e pediu:
– Nice, chega isso pra lá!
Deixei para chorar a perplexidade em casa.
***
A MOÇA E O TARADO
Leila Jalul
O queixo encostando no colo. Nunca olhava
para os lados. Foi assim por quase um mês.
Um dia, enquanto jogava água nas plantas, fiz
a abordagem:
– Oi, moça, bom dia!
– ...
No outro dia a mesma coisa.
– Oi, moça, bom dia!
– ...
E assim foi. Descobri que a tristonha
trabalhava na casa de uma boa pessoa, comerciante e casado com uma médica.
– Oi, moça, está tudo bem?
– Interessa?
– Interessa, sim. Você anda sempre de cabeça
baixa e agora até está chorando. Interessa, sim! Venha cá e converse comigo.
Ande!
Fui até onde estava, peguei-a pelo braço,
trouxe-a para dentro e aliviei o papo. Servi um cafezinho preto, mandei que
sentasse e disse-lhe:
– Minha filha, quantos anos você tem:
– Quase 18.
– Nossa, és tão novinha! Estás doente e precisas
trabalhar, é isso? Estás grávida? Morreu alguém da tua família?
– Não, senhora. É que não posso falar.
– Pode! O que me disser ficará entre nós. Não
se preocupe, pode contar.
– Olhe, senhora, meu filho mais velho tem 3
anos e o pequenininho só 8 meses. A doutora e o patrão são muito bons comigo.
Sou bem paga e ainda ganho uma cesta básica. O negócio é o menino deles, o...
– Não quero saber o nome. Nem do comerciante,
nem da médica e nem do menino. Quero saber o que te faz infeliz.
– Pois é, o menino me bate todos os dias. Eu
fujo dele, mas, enquanto ele não sobe em cima de mim e me abusa de todos os
jeitos, não tenho sossego.
– Huuuum. Saia de lá, garota!
– Agora não dá. Quando o meu marido arranjar
emprego, vou sair.
Passados três dias, ao passar pela minha
casa, fiz questão de cumprimentá-la. O queixo já não encostava no colo...
– Bom dia, menina!
– Bom dia, a senhora está bem?
– Estou, quero saber de você.
– Estou bem, obrigada.
Mal sabe ela (e nem precisa saber) que, no
mesmo dia em que conversamos, era boca da noite, fui na casa dos patrões,
contei a história na frente do tarado e tudo mudou de figura.
A menina de cabeça baixa é hoje uma auxiliar
de enfermagem. E das boas! Bastou que a encaminhasse e desse um empurrãozinho.
Digam, amigos, se não é verdade que, por
falta de um grito se perde uma boiada?
Não é mesmo Mariana?
***
SEBOS E SEBOSIDADES
Leila Jalul
Moço do face, estou pensando nos meus
traumas.
Quando eu era pequena, tudo (ou quase) que
mamãe mandava eu fazer, eu fazia. Acender fogão de carvão com gravetos, fazer
mamadeiras para três irmãos pequenos (dezoito vezes ao dia), cozinhar, passar,
esfregar chão, baldear casa. Tudo eu fazia.
Agora, moço, se tinha uma coisa que eu odiava
fazer era lavar louça em bacias de ágata. Passar o sabão zebu em pedra,
envolvido numa meia velha do vovô, nos copos, em primeiro lugar. A seguir, nos
pratos e nas colheres de alumínio e, por último, nas panelas encardidas pela
fumaça. Era um terror, meu colega!
Mamãe bordava panos de prato e os mantinha
sempre limpos. Acontece, entenda-me, a barra da minha saia estava mais perto. E
enxugava as mãos e a louça nela mesmo.
Mamãe não cansava de me chamar de traste
seboso. Sebosa! – dizia ela, em tom de altíssima repreensão.
O tempo passou. As torneiras passaram a
jorrar a água barrenta do rio. Apareceram o fogão alimentado a gás butano, as
enceradeiras e as ceras com cheiro de querosene. O mundo ficou moderno.
Cresci com a palavra sebosa impregnada em
meus ouvidos. Cresci, trabalhei, amei, fui infeliz o quanto me permiti e,
finalmente, escrevi um livrinho xucro (é com x ou com ch?). Eis que, num belo
dia, já conhecendo o Google, seu parceiro, encontro lá um anúncio de que o meu
livrinho estava sendo vendido num sebo.
Preciso dizer que fiquei perplexamente
perplexa? Só lembrei de mamãe gritando: – para de ser sebosa, traste!
Hoje, moço, tenho consciência de que há sebos
e sebosidades de todos os tipos e qualidades. Prefiro os sebos e as minhas
sebosidades. Os sebos são preciosos e vendem preciosidades. A minha sebosidade,
graças aos céus, não passa para além de mim.
Por favor, pare de perguntar sobre o que
estou pensando!
Qualquer hora dessas posso me aborrecer,
visse?
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p.s. os dois últimos títulos foram dados pelo blog.
Agorinha que me vi aqui. Você é um doce de gente! rsrsrs
ResponderExcluirO "traste" seboso tem muito a lhe agradecer.
Beijos no coração.