Jorge Araken Filho
Solitário, em tempos de crise existencial,
busco na paz da natureza um refúgio para as emoções que não sou capaz de
expressar, uma fala para os sentimentos que se represaram na realidade,
aprisionados pelo silêncio das palavras que não foram ditas. Nesse paraíso de
sons e cores, busco oxigênio para os afetos que sufoquei no limbo do
inconsciente, uma gratificação ilusória para os desejos que não ousei
experimentar na realidade.
Nesse contemplar do belo, do efêmero, viajo
na companhia dos pássaros, enfrentando esse temor pegajoso e disforme de
conhecer o que sou por baixo da persona de conveniência que me veste no teatro
da vida.
Mas é melhor gritar no meio dos pássaros,
soltar os meus sintomas ao lado das orquídeas do que acumular lixo emocional e
andar por aí, de mau humor, reclamando do destino que eu mesmo criei. Cansei de
despejar os meus dejetos nas pessoas que amo.
Um dia desses, mais uma bela tarde do inverno
tropical, caminhava por uma pequena estrada de terra, cercada de palmeiras e
bromélias, últimos vestígios da Mata Atlântica em Saquarema, região dos Lagos
do Rio de Janeiro.
Enquanto as folhas serpenteavam, arrancadas
pelo vento traiçoeiro, que vinha do mar, os meus sintomas caíam dos seus
refúgios, soltando-se do inconsciente, misturando o real e o imaginário, o
simbólico e o concreto, numa metamorfose dos signos e significantes da minha
existência, que foram sendo progressivamente ampliados pelos novos significados
que a maturidade me impôs.
O meu mundo real, agora, depois de ver a
criatura no espelho, parece a mistura do imaginário dos meus devaneios com os
símbolos da linguagem que reaprendi na catarse dos personagens que aprisionava
nas sombras, como personas estranhamente familiares, que reconheci no espelho,
falando com os comigos de mim mesmo.
Begônias solitárias, algumas orquídeas e
velhos cipós cercavam o caminho desse paraíso perdido, no litoral de Saquarema.
Jacarandás seculares, testemunhas silenciosas
da biodiversidade da Mata Atlântica, cochichavam a minha presença com
jequitibás-rosas e cedros:
— Lá vem aquele bicho doido, que fala
sozinho! — sussurrava uma velha figueira, cansada da maldade dos homens, mas
ainda enérgica, com grandes raízes, que afloravam, aqui e ali, no solo
encharcado por um olho d'água ao lado da estrada.
Um pequeno beija-flor de peito verde e cauda
alaranjada, sem se dar conta daquele ser humano indigno, que caminhava perdido,
batia as suas asas aflitas, sugando, com rara felicidade, o néctar de uma
camélia branca que insistia em ser bela, apesar do negrume dos meus tormentos.
Como seria a minha vida, se a sede de poder e
bens materiais, a cobiça por reconhecimento e aceitação encontrassem numa
bromélia atraente e acolhedora o ninho para descansar meus dilemas, o néctar
para saciar meus desejos?
Perdido em pensamentos desconexos, que
flutuavam, com estranha nitidez, em tempos passados, eu mergulhava, em
progressões ritmadas pelo som da natureza, nas memórias das pessoas amadas, que
enterrei ainda vivas, mas que, malogrado a minha injustiça, deixaram marcas no
meu coração.
Completamente absorto, escutava o eco
distante de ondas ferozes, que quebravam na areia, levantando breves
redemoinhos na água, que divisava ao final da trilha estreita, que se afunilava
a cada passo, como se a natureza retomasse seus domínios do homem.
O sol, que se refugiava do dia, cansado,
iluminava o horizonte, com suas cores difusas, tons indistintos de vermelho e
laranja, que tingiam as águas agitadas do Atlântico.
Egoísta, mesmo sem consciência disso, só
desejava aquela solidão momentânea, que me concedia alguns minutos de
contemplação do belo, sem me preocupar com os meus cabelos, com as minhas
roupas ou com o meu jeito descuidado de falar sozinho, desafiando os seres
invisíveis que me atormentam.
Mas o destino é caprichoso e sorrateiro...
Distraído por um canário, que atravessou o
meu caminho, não percebi um vulto que acabara de sair de uma casa. Só o percebi
depois de alguns segundos, quando passei em frente ao portão de madeira maciça,
com a singela inscrição: "paraíso perdido". Aquele vulto não me viu,
seguindo o caminho do mar azul turquesa.
Era um belo exemplar do sexo feminino, longos
cabelos loiros, soltos ao vento, olhos azuis (assim os imaginei à distância),
curvas perigosas, protuberâncias monumentais, vales profundos, reentrâncias e
concavidades que me enfeitiçavam com o seu doce gingado, aquela malemolência
cruel, quase sádica das mulheres que herdaram a beleza de Afrodite, mas possuem
a impura concupiscência das sereias, que enfeitiçam os guerreiros e entorpecem
os sábios.
Nem sábio, nem guerreiro, eu não passava de
um menino, com seus carrinhos de plástico, diante daquela sereia que
atormentava os navegadores incautos e solitários, inebriados por seu canto
melódico. Sem a força de Odisseu, a caminho de Ítaca, sem a intercessão de
Atena, acabei cativo da bela ninfa de Saquarema. Com ela, a Calipso da minha
Odisséia, passaria sete anos perdido... Pobre Penélope! Haveria de
permanecer, pelo resto das suas noites, frias e solitárias, desfazendo a
mortalha, à minha espera, enquanto eu me deliciava com a encantadora Calipso, a
ninfa do mar de Saquarema.
Ela caminhava, distraída, fumando seu beck,
sem perceber que eu me aproximava, hipnotizado por seus encantos, derrapando os
olhos pedintes e cobiçoso em suas curvas salientes e bem definidas.
Suas pernas, e que pernas... A obra mais
divina da criação, longas e graciosas, grossas e firmes como um carvalho,
voluptuosas como as de Afrodite. Não, que Afrodite que nada! Eram como os
ébanos divinos das passistas de Escolas de Samba! Os seios eram majestosos,
eretos e arredondados, daqueles de proporções hercúleas, que enchem bocas
famintas de meninos fogosos. . . Nem vou falar do lindo bumbum, de boca gulosa,
com um talho divino, que formava um vale profundo entre os Apalaches...
Precisaria de um livro inteiro para
descrevê-la. Diria o poeta Austin Henry Dobson, no poema "To a Greek
Girl": "a Dream of form in days of thought" ("um sonho de
forma em dias de pensamento"). E que formas...
Nem os meus pensamentos mais longínquos e
fantasiosos a teriam imaginado em traços mais perfeitos, nem nos meus delírios
de prazer solitário, a cinco dedos, haveria de buscar inspiração em uma beleza
assim tão delicada, quase divina, a serpente do paraíso, que oferece aos
caminhantes solitários o fruto proibido, que dá voz ao inconsciente e desperta
a libido sublimada pelos fracassos na arte do amor.
E como balançava aquele doce poema em forma
de Ninfa. . . Parecia não perceber os mortais, como eu, que a seguiam,
hipnotizados por seu canto silencioso, feito de gestos, aparentemente
descuidados, quase imperceptíveis aos olhos femininos, mas vivamente capturados
pelos sentidos de fera dos homens enjaulados em seus hormônios.
Ela talvez não tivesse consciência dos
feromônios que marcavam seus passos de gata no cio, algo que sentia nas
golfadas de ar, que invadiam os meus pulmões. Tá bem! Posso estar exagerando um
pouquinho. Perdem-me, contudo, o eventual exagero! Aquele vapor barato, um leve
odor de sândalo, que se misturava com a brisa do mar, deve ter entorpecido os
meus sentidos, que nunca foram muito confiáveis diante de fêmeas no cio,
principalmente dessas dançarinas do efêmero, musas dos poemas eternos, que
carregam esses grandes e profundos apêndices no dorso.
Éramos só nós dois naquela estrada deserta,
um paraíso perdido, com raras habitações, quase sempre de alto padrão, ocupadas
pelos nobres da Cidade Maravilhosa, nos feriados e meses de verão.
Ela saiu de uma casa da praia, misto de sítio
e Jardim do Éden, com árvores frutíferas e belas flores. No centro do terreno,
numa parte mais elevada, ao final de uma grande alameda de plátanos e palmeiras
imperiais, havia uma casa de dois pisos, com uma ampla varanda que a
circundava.
A doce Calipso não percebeu que eu vinha ao
longe, distraída, talvez, pela difícil tarefa de acender seu baseado. A brisa
insistente, que vinha do mar, caprichosa e irritante, parecia ter vontade
própria, brincando, teimosamente, com a chama do seu pequeno isqueiro prateado,
que refletia a luz do sol nos meus olhos.
Logo que ela se virou em direção à praia, vi,
por cima dos seus ombros, a fumacinha da paz, que subia, iluminada pelo sol,
que baixava, sonolento, às nossas costas: "habemus cannabis" —
pensei, sorrindo.
Ela seguia em direção à praia, com passos
curtos e ritmados, enquanto desfrutava, em silêncio profundo, os efeitos
inebriantes do seu pescador de ilusões. Nada melhor do que o Rio de Janeiro e
seus encantos, para saborear pecados e aventuras que fazem da vida esse
maravilhoso e caótico conto de fadas e duendes, de princesas e sapos, de
monstros honrados e heróis sem caráter. Prefiro pecar sem pudor do que morrer
de tédio no paraíso. Só percebi a felicidade, quando parei de julgar!
O meu plano era apenas caminhar pela estrada
de terra que margeia a praia. Era... Antes de me encantar com aquele corpo
dourado, a deliciosa e suculenta maçã do amor proibido... Finalmente entendi
o Vinicius e sua Garota de Ipanema. Sem inspiração não nascem poemas, não se pintam
quadros...
As palavras começaram a surgir, revoltas, sem
forma, como as ondas do mar que divisava ao longe. Mentalmente, comecei a
escrever este conto de uma tarde de verão... Escritores, como eu, encontram
gratificação para os desejos mais profundos, mais secretos e proibidos nos
personagens, que soltam, ao longo da narrativa, os instintos reprimidos pelo
medo de enfrentar as sombras do inconsciente.
Continuei andando na direção daquela doce
garota e seu balançar, que era muito mais que um poema, diria o bom e velho
“capitão do mato Vinicius de Moraes, Poeta e Diplomata, o branco mais preto do
Brasil, na linha direta de Xangô”.
Mantive alguns metros de distância, para que
os meus olhos traidores, cheios de verdade, não desfizessem as minhas ilusões de
perfeição divina.
Depois de acender seu beck, a musa do paraíso
perdido, com um leve menear da cabeça, enfim percebeu, visivelmente surpresa,
que alguém se aproximava. Ela deve ter estranhado aquele penetra em sua
festinha solitária. A estranheza inicial logo se transformou em incômodo.
Ela acelerou o passo, mas não conseguia
desvencilhar-se do seu "perseguidor" (um ato falho, talvez). Por mais
que as suas pernas se esforçassem para vencer o terreno, eu continuava por
perto, devorando, com os olhos gulosos, cada pedacinho daquele corpo dourado.
Antes que você pense algo terrível sobre mim, vou me defender, suspeitamente,
embora, de certas insinuações: ando rápido, mesmo quando não tenho nada a
fazer. Acredite, se quiser...
Continuei no meu ritmo, mas sempre me
aproximando da loira misteriosa. Não sei exatamente o que se passava na
cabecinha daquela Eva e seu cigarrinho proibido. Talvez pensasse em estupro ou,
pior ainda, que eu fosse algum conhecido. Poderia ser alguém a revelar a
indiscrição daquele cigarrinho mágico, o fruto proibido do paraíso, que
inebriava um casal de pintassilgos pousados em uma mangueira anciã.
Sem diminuir o passo, ela olhou para trás,
fixando-se nos meus olhos, para desvendar as intenções ocultas do seu estranho
"perseguidor". Não me reconheceu, como era de se esperar. Embora eu
sempre caminhasse por ali, nunca havia cruzado os seus caminhos. E teria me
lembrado daquela ninfa, se os nossos olhares, mesmo por um breve instante,
houvessem se encontrado.
Diante da dúvida, ela apertou o passo e,
quando nada lhe restava, a não ser o desespero, começou a correr.
Hesitei de início, sem saber como reagir. As
palavras não saíam da garganta, sufocadas pelo despertar de um sonho.
Ela deu um grito, que rompeu o silêncio da
tarde:
— Pedro, me espera!
Os canários permaneceram mudos, testemunhando
o horror daquela jovem feiticeira do amor.
Com o coração palpitando, quase saindo pela
boca, continuei a caminhar. Sem entender os motivos, diminuí o passo,
culpando-me, talvez, por tê-la assustado, ou entorpecendo-me, quem sabe, por
acordar tão subitamente da ilusão do amor correspondido (eu a imaginava num
longo beijo, trocando os doces e inebriantes fluidos do amor).
Os meus pés pareciam ter vontade própria,
seguindo adiante, enquanto o diabinho do ouvido esquerdo, ardilosamente
disfarçado de anjo, me dizia para voltar no meu próprio rastro.
Depois de alguns segundos de lenta agonia,
percebi que tínhamos companhia: a cerca de duzentos metros estava um rapaz
alto, sem camisa, com uma longa prancha de surfe, que a aguardava no portão de
uma bela casa de frente para o mar.
Ela correu em busca do herói, desesperada
pelos braços fortes e acolhedores daquele jovem, que a recebeu com certa
perplexidade. Eles se abraçaram, com um beijo no rosto, trocando algumas palavras,
que não pude ouvir. O cigarrinho encantado, abandonado durante a corrida para a
salvação, ainda soltava seus vapores, em ondas que serpenteavam no ar, levadas
pela brisa úmida do oceano.
Ao passar pelo casal, pensava no medo
profundo, quase histérico, que a violência causa nos seres humanos,
transformando em malfeitores hediondos os mais inofensivos animais, como eu.
Será que sou mesmo inofensivo, começo a me perguntar...
Naquele instante, nasceu um herói. Eu poderia
ter esclarecido o engano daquela jovem, mas deixei que o herói do paraíso
perdido, o Odisseu da minha Calipso, desfrutasse sete anos de prazer na ilha de
Ogígia.
Mas, enfim, o que seria do herói sem o vilão?
Alguém consegue esquecer de Darth Vader, do Coringa ou de Hannibal Lecter? E do
coiote do desenho animado? São todos vilões, seres que odiamos amar ou que
amamos odiar. Por que eles permanecem em nossos corações, muitas vezes até mais
do que os heróis?
Ora, porque esses pontos fora da curva, esses
rebeldes incompreendidos, arquétipos da maldade, representam as nossas sombras,
o submundo de crueldade que preferimos ver nos outros, e não em nós.
Inicia-se, na fantasia que dialoga com o
nosso próprio mundo psíquico, uma verdadeira batalha épica que reproduz,
através dos arquétipos humanos do herói e do vilão, do bem e do mal, a luta
entre os princípios do prazer e da realidade, entre o id e o superego, pelo
controle do ego e do que vai se tornar consciente.
De um lado, a complexa maldade dos vilões,
seres de inteligência maquiavélica, com desejos impulsivos e inesperados, além
de profundo desprezo por convenções sociais e limites éticos. Estes representam
o nosso próprio id, que é governado pela busca do prazer.
De outro, a tediosa moralidade dos heróis,
figuras simples, em sua infinita nobreza, com preocupações éticas e morais,
atitudes sempre bondosas e sem o calor do inesperado. Estes representam o papel
do superego, que simboliza a realidade e seus limites.
Através deles, exorcizamos de nós mesmos,
através das lendas e mitos, e em nome do princípio da realidade, os nossos
próprios demônios.
O vilão começa vencendo, ou seja, o id obtém
prazer nas suas vitórias fugazes, mas, ao final, o bem prevalece, com a derrota
do mal, mesmo provisória, que satisfaz o superego e suas preocupações morais.
Em meio a essa batalha épica, o ego do leitor
ou espectador das lendas e mitos consegue conciliar as suas forças internas,
harmonizando o prazer com a realidade. Mais que isso, gratifica as pulsões mais
primitivas e os desejos reprimidos no inconsciente, experimentando o prazer
possível diante das exigências castradoras do superego, descarregando, assim, a
pressão interna.
Na verdade, só desprezamos os vilões, porque
eles se identificam com uma certa criatura que reprimimos dentro de nós mesmos...
Preferi criar o herói, tornando-me o vilão...
Passei tão próximo daquele Tarzan e sua Jane,
que conseguia escutar a respiração do herói e da mocinha indefesa, a virgem dos
lábios de mel (aceite, que é melhor: o conto é meu, portanto ela era virgem e
gostosa). Com uma leve contração dos lábios, tentava manter o ar de mistério,
para não demonstrar a excitação da minha libido naquele encontro furtivo. Não
sei exatamente o porquê, mas fazia esforço, para não dar pistas do meu desejo
de fazer amor com a Eva do paraíso perdido.
No mais profundo e respeitoso silêncio,
contudo, prossegui no meu caminho, olhando as ondas que lambiam a areia da
praia.
Só um coração partido consegue entender a
poesia daquela musa de Saquarema, a mulher do corpo dourado que nunca toquei.
Se a houvesse tocado, o encanto se desfaria nas areias daquela praia deserta, e
ela, a etérea e indefinível sereia, que foi a razão de tantos naufrágios em
corações humanos, deixaria de ser um sonho para se tornar uma realidade muito
distante das minhas fantasias.
E assim nasceu a lenda do surfista prateado
de Saquarema...
Quanto a mim, já que não pude ser o herói,
tornei-me o vilão...
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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