segunda-feira, 27 de julho de 2015

A GAROTA DE SAQUAREMA E A LENDA DO SURFISTA PRATEADO

Jorge Araken Filho


Solitário, em tempos de crise existencial, busco na paz da natureza um refúgio para as emoções que não sou capaz de expressar, uma fala para os sentimentos que se represaram na realidade, aprisionados pelo silêncio das palavras que não foram ditas. Nesse paraíso de sons e cores, busco oxigênio para os afetos que sufoquei no limbo do inconsciente, uma gratificação ilusória para os desejos que não ousei experimentar na realidade.

Nesse contemplar do belo, do efêmero, viajo na companhia dos pássaros, enfrentando esse temor pegajoso e disforme de conhecer o que sou por baixo da persona de conveniência que me veste no teatro da vida.

Mas é melhor gritar no meio dos pássaros, soltar os meus sintomas ao lado das orquídeas do que acumular lixo emocional e andar por aí, de mau humor, reclamando do destino que eu mesmo criei. Cansei de despejar os meus dejetos nas pessoas que amo.

Um dia desses, mais uma bela tarde do inverno tropical, caminhava por uma pequena estrada de terra, cercada de palmeiras e bromélias, últimos vestígios da Mata Atlântica em Saquarema, região dos Lagos do Rio de Janeiro.

Enquanto as folhas serpenteavam, arrancadas pelo vento traiçoeiro, que vinha do mar, os meus sintomas caíam dos seus refúgios, soltando-se do inconsciente, misturando o real e o imaginário, o simbólico e o concreto, numa metamorfose dos signos e significantes da minha existência, que foram sendo progressivamente ampliados pelos novos significados que a maturidade me impôs.

O meu mundo real, agora, depois de ver a criatura no espelho, parece a mistura do imaginário dos meus devaneios com os símbolos da linguagem que reaprendi na catarse dos personagens que aprisionava nas sombras, como personas estranhamente familiares, que reconheci no espelho, falando com os comigos de mim mesmo.

Begônias solitárias, algumas orquídeas e velhos cipós cercavam o caminho desse paraíso perdido, no litoral de Saquarema.

Jacarandás seculares, testemunhas silenciosas da biodiversidade da Mata Atlântica, cochichavam a minha presença com jequitibás-rosas e cedros:

— Lá vem aquele bicho doido, que fala sozinho! — sussurrava uma velha figueira, cansada da maldade dos homens, mas ainda enérgica, com grandes raízes, que afloravam, aqui e ali, no solo encharcado por um olho d'água ao lado da estrada.

Um pequeno beija-flor de peito verde e cauda alaranjada, sem se dar conta daquele ser humano indigno, que caminhava perdido, batia as suas asas aflitas, sugando, com rara felicidade, o néctar de uma camélia branca que insistia em ser bela, apesar do negrume dos meus tormentos.

Como seria a minha vida, se a sede de poder e bens materiais, a cobiça por reconhecimento e aceitação encontrassem numa bromélia atraente e acolhedora o ninho para descansar meus dilemas, o néctar para saciar meus desejos?

Perdido em pensamentos desconexos, que flutuavam, com estranha nitidez, em tempos passados, eu mergulhava, em progressões ritmadas pelo som da natureza, nas memórias das pessoas amadas, que enterrei ainda vivas, mas que, malogrado a minha injustiça, deixaram marcas no meu coração.

Completamente absorto, escutava o eco distante de ondas ferozes, que quebravam na areia, levantando breves redemoinhos na água, que divisava ao final da trilha estreita, que se afunilava a cada passo, como se a natureza retomasse seus domínios do homem.

O sol, que se refugiava do dia, cansado, iluminava o horizonte, com suas cores difusas, tons indistintos de vermelho e laranja, que tingiam as águas agitadas do Atlântico.

Egoísta, mesmo sem consciência disso, só desejava aquela solidão momentânea, que me concedia alguns minutos de contemplação do belo, sem me preocupar com os meus cabelos, com as minhas roupas ou com o meu jeito descuidado de falar sozinho, desafiando os seres invisíveis que me atormentam.

Mas o destino é caprichoso e sorrateiro...

Distraído por um canário, que atravessou o meu caminho, não percebi um vulto que acabara de sair de uma casa. Só o percebi depois de alguns segundos, quando passei em frente ao portão de madeira maciça, com a singela inscrição: "paraíso perdido". Aquele vulto não me viu, seguindo o caminho do mar azul turquesa.

Era um belo exemplar do sexo feminino, longos cabelos loiros, soltos ao vento, olhos azuis (assim os imaginei à distância), curvas perigosas, protuberâncias monumentais, vales profundos, reentrâncias e concavidades que me enfeitiçavam com o seu doce gingado, aquela malemolência cruel, quase sádica das mulheres que herdaram a beleza de Afrodite, mas possuem a impura concupiscência das sereias, que enfeitiçam os guerreiros e entorpecem os sábios.

Nem sábio, nem guerreiro, eu não passava de um menino, com seus carrinhos de plástico, diante daquela sereia que atormentava os navegadores incautos e solitários, inebriados por seu canto melódico. Sem a força de Odisseu, a caminho de Ítaca, sem a intercessão de Atena, acabei cativo da bela ninfa de Saquarema. Com ela, a Calipso da minha Odisséia, passaria sete anos perdido... Pobre Penélope! Haveria de permanecer, pelo resto das suas noites, frias e solitárias, desfazendo a mortalha, à minha espera, enquanto eu me deliciava com a encantadora Calipso, a ninfa do mar de Saquarema.

Ela caminhava, distraída, fumando seu beck, sem perceber que eu me aproximava, hipnotizado por seus encantos, derrapando os olhos pedintes e cobiçoso em suas curvas salientes e bem definidas.

Suas pernas, e que pernas... A obra mais divina da criação, longas e graciosas, grossas e firmes como um carvalho, voluptuosas como as de Afrodite. Não, que Afrodite que nada! Eram como os ébanos divinos das passistas de Escolas de Samba! Os seios eram majestosos, eretos e arredondados, daqueles de proporções hercúleas, que enchem bocas famintas de meninos fogosos. . . Nem vou falar do lindo bumbum, de boca gulosa, com um talho divino, que formava um vale profundo entre os Apalaches...

Precisaria de um livro inteiro para descrevê-la. Diria o poeta Austin Henry Dobson, no poema "To a Greek Girl": "a Dream of form in days of thought" ("um sonho de forma em dias de pensamento"). E que formas...

Nem os meus pensamentos mais longínquos e fantasiosos a teriam imaginado em traços mais perfeitos, nem nos meus delírios de prazer solitário, a cinco dedos, haveria de buscar inspiração em uma beleza assim tão delicada, quase divina, a serpente do paraíso, que oferece aos caminhantes solitários o fruto proibido, que dá voz ao inconsciente e desperta a libido sublimada pelos fracassos na arte do amor.
E como balançava aquele doce poema em forma de Ninfa. . . Parecia não perceber os mortais, como eu, que a seguiam, hipnotizados por seu canto silencioso, feito de gestos, aparentemente descuidados, quase imperceptíveis aos olhos femininos, mas vivamente capturados pelos sentidos de fera dos homens enjaulados em seus hormônios.

Ela talvez não tivesse consciência dos feromônios que marcavam seus passos de gata no cio, algo que sentia nas golfadas de ar, que invadiam os meus pulmões. Tá bem! Posso estar exagerando um pouquinho. Perdem-me, contudo, o eventual exagero! Aquele vapor barato, um leve odor de sândalo, que se misturava com a brisa do mar, deve ter entorpecido os meus sentidos, que nunca foram muito confiáveis diante de fêmeas no cio, principalmente dessas dançarinas do efêmero, musas dos poemas eternos, que carregam esses grandes e profundos apêndices no dorso.

Éramos só nós dois naquela estrada deserta, um paraíso perdido, com raras habitações, quase sempre de alto padrão, ocupadas pelos nobres da Cidade Maravilhosa, nos feriados e meses de verão.

Ela saiu de uma casa da praia, misto de sítio e Jardim do Éden, com árvores frutíferas e belas flores. No centro do terreno, numa parte mais elevada, ao final de uma grande alameda de plátanos e palmeiras imperiais, havia uma casa de dois pisos, com uma ampla varanda que a circundava.

A doce Calipso não percebeu que eu vinha ao longe, distraída, talvez, pela difícil tarefa de acender seu baseado. A brisa insistente, que vinha do mar, caprichosa e irritante, parecia ter vontade própria, brincando, teimosamente, com a chama do seu pequeno isqueiro prateado, que refletia a luz do sol nos meus olhos.

Logo que ela se virou em direção à praia, vi, por cima dos seus ombros, a fumacinha da paz, que subia, iluminada pelo sol, que baixava, sonolento, às nossas costas: "habemus cannabis" — pensei, sorrindo.

Ela seguia em direção à praia, com passos curtos e ritmados, enquanto desfrutava, em silêncio profundo, os efeitos inebriantes do seu pescador de ilusões. Nada melhor do que o Rio de Janeiro e seus encantos, para saborear pecados e aventuras que fazem da vida esse maravilhoso e caótico conto de fadas e duendes, de princesas e sapos, de monstros honrados e heróis sem caráter. Prefiro pecar sem pudor do que morrer de tédio no paraíso. Só percebi a felicidade, quando parei de julgar!

O meu plano era apenas caminhar pela estrada de terra que margeia a praia. Era... Antes de me encantar com aquele corpo dourado, a deliciosa e suculenta maçã do amor proibido... Finalmente entendi o Vinicius e sua Garota de Ipanema. Sem inspiração não nascem poemas, não se pintam quadros...

As palavras começaram a surgir, revoltas, sem forma, como as ondas do mar que divisava ao longe. Mentalmente, comecei a escrever este conto de uma tarde de verão... Escritores, como eu, encontram gratificação para os desejos mais profundos, mais secretos e proibidos nos personagens, que soltam, ao longo da narrativa, os instintos reprimidos pelo medo de enfrentar as sombras do inconsciente.

Continuei andando na direção daquela doce garota e seu balançar, que era muito mais que um poema, diria o bom e velho “capitão do mato Vinicius de Moraes, Poeta e Diplomata, o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô”.

Mantive alguns metros de distância, para que os meus olhos traidores, cheios de verdade, não desfizessem as minhas ilusões de perfeição divina.

Depois de acender seu beck, a musa do paraíso perdido, com um leve menear da cabeça, enfim percebeu, visivelmente surpresa, que alguém se aproximava. Ela deve ter estranhado aquele penetra em sua festinha solitária. A estranheza inicial logo se transformou em incômodo.

Ela acelerou o passo, mas não conseguia desvencilhar-se do seu "perseguidor" (um ato falho, talvez). Por mais que as suas pernas se esforçassem para vencer o terreno, eu continuava por perto, devorando, com os olhos gulosos, cada pedacinho daquele corpo dourado. Antes que você pense algo terrível sobre mim, vou me defender, suspeitamente, embora, de certas insinuações: ando rápido, mesmo quando não tenho nada a fazer. Acredite, se quiser...

Continuei no meu ritmo, mas sempre me aproximando da loira misteriosa. Não sei exatamente o que se passava na cabecinha daquela Eva e seu cigarrinho proibido. Talvez pensasse em estupro ou, pior ainda, que eu fosse algum conhecido. Poderia ser alguém a revelar a indiscrição daquele cigarrinho mágico, o fruto proibido do paraíso, que inebriava um casal de pintassilgos pousados em uma mangueira anciã.

Sem diminuir o passo, ela olhou para trás, fixando-se nos meus olhos, para desvendar as intenções ocultas do seu estranho "perseguidor". Não me reconheceu, como era de se esperar. Embora eu sempre caminhasse por ali, nunca havia cruzado os seus caminhos. E teria me lembrado daquela ninfa, se os nossos olhares, mesmo por um breve instante, houvessem se encontrado.

Diante da dúvida, ela apertou o passo e, quando nada lhe restava, a não ser o desespero, começou a correr.

Hesitei de início, sem saber como reagir. As palavras não saíam da garganta, sufocadas pelo despertar de um sonho.

Ela deu um grito, que rompeu o silêncio da tarde:

— Pedro, me espera!

Os canários permaneceram mudos, testemunhando o horror daquela jovem feiticeira do amor.

Com o coração palpitando, quase saindo pela boca, continuei a caminhar. Sem entender os motivos, diminuí o passo, culpando-me, talvez, por tê-la assustado, ou entorpecendo-me, quem sabe, por acordar tão subitamente da ilusão do amor correspondido (eu a imaginava num longo beijo, trocando os doces e inebriantes fluidos do amor).

Os meus pés pareciam ter vontade própria, seguindo adiante, enquanto o diabinho do ouvido esquerdo, ardilosamente disfarçado de anjo, me dizia para voltar no meu próprio rastro.

Depois de alguns segundos de lenta agonia, percebi que tínhamos companhia: a cerca de duzentos metros estava um rapaz alto, sem camisa, com uma longa prancha de surfe, que a aguardava no portão de uma bela casa de frente para o mar.

Ela correu em busca do herói, desesperada pelos braços fortes e acolhedores daquele jovem, que a recebeu com certa perplexidade. Eles se abraçaram, com um beijo no rosto, trocando algumas palavras, que não pude ouvir. O cigarrinho encantado, abandonado durante a corrida para a salvação, ainda soltava seus vapores, em ondas que serpenteavam no ar, levadas pela brisa úmida do oceano.

Ao passar pelo casal, pensava no medo profundo, quase histérico, que a violência causa nos seres humanos, transformando em malfeitores hediondos os mais inofensivos animais, como eu. Será que sou mesmo inofensivo, começo a me perguntar...

Naquele instante, nasceu um herói. Eu poderia ter esclarecido o engano daquela jovem, mas deixei que o herói do paraíso perdido, o Odisseu da minha Calipso, desfrutasse sete anos de prazer na ilha de Ogígia.

Mas, enfim, o que seria do herói sem o vilão? Alguém consegue esquecer de Darth Vader, do Coringa ou de Hannibal Lecter? E do coiote do desenho animado? São todos vilões, seres que odiamos amar ou que amamos odiar. Por que eles permanecem em nossos corações, muitas vezes até mais do que os heróis?

Ora, porque esses pontos fora da curva, esses rebeldes incompreendidos, arquétipos da maldade, representam as nossas sombras, o submundo de crueldade que preferimos ver nos outros, e não em nós.

Inicia-se, na fantasia que dialoga com o nosso próprio mundo psíquico, uma verdadeira batalha épica que reproduz, através dos arquétipos humanos do herói e do vilão, do bem e do mal, a luta entre os princípios do prazer e da realidade, entre o id e o superego, pelo controle do ego e do que vai se tornar consciente.

De um lado, a complexa maldade dos vilões, seres de inteligência maquiavélica, com desejos impulsivos e inesperados, além de profundo desprezo por convenções sociais e limites éticos. Estes representam o nosso próprio id, que é governado pela busca do prazer.

De outro, a tediosa moralidade dos heróis, figuras simples, em sua infinita nobreza, com preocupações éticas e morais, atitudes sempre bondosas e sem o calor do inesperado. Estes representam o papel do superego, que simboliza a realidade e seus limites.

Através deles, exorcizamos de nós mesmos, através das lendas e mitos, e em nome do princípio da realidade, os nossos próprios demônios.

O vilão começa vencendo, ou seja, o id obtém prazer nas suas vitórias fugazes, mas, ao final, o bem prevalece, com a derrota do mal, mesmo provisória, que satisfaz o superego e suas preocupações morais.

Em meio a essa batalha épica, o ego do leitor ou espectador das lendas e mitos consegue conciliar as suas forças internas, harmonizando o prazer com a realidade. Mais que isso, gratifica as pulsões mais primitivas e os desejos reprimidos no inconsciente, experimentando o prazer possível diante das exigências castradoras do superego, descarregando, assim, a pressão interna.

Na verdade, só desprezamos os vilões, porque eles se identificam com uma certa criatura que reprimimos dentro de nós mesmos...

Preferi criar o herói, tornando-me o vilão...

Passei tão próximo daquele Tarzan e sua Jane, que conseguia escutar a respiração do herói e da mocinha indefesa, a virgem dos lábios de mel (aceite, que é melhor: o conto é meu, portanto ela era virgem e gostosa). Com uma leve contração dos lábios, tentava manter o ar de mistério, para não demonstrar a excitação da minha libido naquele encontro furtivo. Não sei exatamente o porquê, mas fazia esforço, para não dar pistas do meu desejo de fazer amor com a Eva do paraíso perdido.

No mais profundo e respeitoso silêncio, contudo, prossegui no meu caminho, olhando as ondas que lambiam a areia da praia.

Só um coração partido consegue entender a poesia daquela musa de Saquarema, a mulher do corpo dourado que nunca toquei. Se a houvesse tocado, o encanto se desfaria nas areias daquela praia deserta, e ela, a etérea e indefinível sereia, que foi a razão de tantos naufrágios em corações humanos, deixaria de ser um sonho para se tornar uma realidade muito distante das minhas fantasias.

E assim nasceu a lenda do surfista prateado de Saquarema...

Quanto a mim, já que não pude ser o herói, tornei-me o vilão...

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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA


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