domingo, 29 de maio de 2016

FAÇA DE CONTA

Thiago de Mello 


Faça de conta que somos 
duas crianças andando 
cantando em frente do mar, 
enquanto a noite não vem. 
(Pressinto que noite grande 
já está à caminho.) Mas faça 
de conta que eu não lhe dei 
este aviso e vou contando 
uma história tão bonita 
de um amor que é como o mar 
que não se acaba. Pois faça 
de conta que é o nosso amor.

E quando a noite descer 
e a sombra der no chão, 
você vai lembrar a história. 
Com ele, faça de conta 
que a luz pura do seu dia 
me alcança e seremos sempre 
duas crianças andando, 
cantando em frente do mar.

Mas, amor, faça de conta 
que essa história de nós dois 
não tem nada de invenção. 
MELLO, Thiago de. Acerto de contas. São Paulo: Global, 2015. p.74

quinta-feira, 26 de maio de 2016

O passado acriano e a esquizofrenia coletiva. CONCLUSÃO do livro "O Discurso fundador do Acre(ano)" do Prof. Dr. Eduardo de Araújo Carneiro

CONCLUSÃO


“O que nos importa é observar esse movimento entre o real da descoberta (sem-sentido), a fantasia (imaginação), e a ideologia (imaginário), produzindo a realidade dessa história que se está fazendo. E que produz o efeito de que a ideologia sempre está fora da história (oficial). Por seu lado, essa história aproveita, do discurso fundador, o fato de que nele há ainda uma indistinção entre imaginação, imaginário e realidade”.
 (ORLANDI, 1993, p. 18, grifo nosso).
O Acre é, acima de tudo, a consagração do homem branco de nacionalidade brasileira em uma região milenarmente marcada pela presença indígena. No entanto, o apoderamento físico desse território foi precedido pelo assenhoreamento simbólico dele, uma vez que, antes mesmo da colonização, os migrantes já imaginavam aquele “fim do mundo” (JACKSON, 2011), como uma “terra de ninguém”, uma espécie de “deserto ocidental” (COSTA, 2005).

A nosogenia acriana foi inaugurada pelo apelo econômico do capital internacional em favor da produção da borracha e pela violência imagética da negação da humanidade indígena. O sangrento genocídio, o dramático culturicídio e tantas outras patologias sociais protagonizados pelos “heróis patriotas” (Cf. CARNEIRO, 2015a), base da árvore genealógica do povo acriano, foram invisibilizados pela historiografia oficial. Infelizmente o excesso de “acrEanismo” provocado por políticas simbólicas de governos com tendência ao autoritarismo populista tem afetado a sanidade mental coletiva local. Até hoje parte dos acrianos sofrem com surtos de megalomania e com delírios de grandeza, pois insistem em viver sob a égide de um passado fantasiosamente glorioso. 

Eu tive que aproximar as minhas reflexões da linguística e utilizar o conceito de discurso fundador para entender como um período tão violento e tão corrupto conseguiu transmutar-se em uma espécie de Idade de Ouro da acrianidade. Por conta disso, esse livro se preocupou mais em historicizar a emergência da verossimilhança do que em descrever os fatos propriamente ditos. A verossimilhança é a imagem através da qual as “vozes constituintes do discurso fundador” pintaram a cena inaugural do Acre(ano). É a representação ideal dos acontecimentos, de como deveriam ser imortalizados no imaginário social para posterior recordação.

Em resumo podemos dizer que o discurso fundador do Acre tem as seguintes características: a) estabelece um marco inaugural glorioso para o Acre(ano) – a “Revolução Acriana”; b) sugere o culto ao passado por meio do eterno retorno às origens; c) instaura o idealismo patriótico como motivação constituinte da “Revolução Acriana”;         d) consagra qualidades heroicas para a primeira geração de acrianos;      e) inventa uma comunhão em torno da “Revolução”.

Até hoje o período relativo à formação histórica do Acre(ano) é tratado como uma espécie de Idade de Ouro, em que os paradigmas e os arquétipos da identidade acriana se encontram em seu estado puro. É como se a ideia triunfalista da origem fosse fiadora do otimismo presente e futuro. Esse atavismo acriano precisa ser desintoxicado, pois a ideia de gênese defendida está “envenenada” com “acrEanocentrismo”. No decorrer dessas linhas mostramos que a apoteose da genealogia Acre(ana) foi o resultado de um processo de significação, qual seja, o do “embelezamento” dos fatos. A nossa missão foi justamente denunciar o caráter artificial desses sentidos enobrecedores, revelando o jogo de interesse que estava por trás deles.

O fato de o caráter “glorioso” da origem ser retratado nos documentos e textos jornalísticos da época, não garante o caráter célebre da genealogia do Acre(ano). Isso porque o discurso enobrecedor é explicado pelas condições históricas e linguísticas que permitiram a emergência dele. Consequentemente, a representação beatificada do Acre(ano) tem uma história e está eivada de “violência simbólica” e de relações de poder. A manutenção dela é puramente convencional. O gentílico “acrEano”, por exemplo, foi inventado com o propósito de causar certa união entre os “brasileiros do Acre” em torno da causa latifundiária dos seringalistas e da demanda fiscal do governo do Amazonas.

Essa disposição à heroificação do passado demonstra o conservadorismo das elites acrianas, afinal, a evocação ao heroísmo se torna uma necessidade social quando se trata de uma sociedade constituída de covardes (Cf. MICELI, 1994), e “quanto mais fracos os homens numa sociedade, tanto mais eles precisam de super-heróis. E tanto mais super-heróis eles recebem para se manterem fracos” (KOTHE, 1985, p. 72). E tudo isso não deve servir de espanto, pois a retórica da identidade é sempre mais proferida naqueles povos em que a união é mais frágil.

O debate sobre o discurso fundador do Acre(ano) está apenas começando. Há um longo caminho a ser percorrido para que essa categoria de análise seja consolidada nos estudos historiográfico e linguístico regionais. Toda a pesquisa que resultou nesse livro visou encontrar, nas “origens” do Acre(ano) fincadas pela historiografia oficial, a formação do acriano enquanto subjetividade, e a do Acre enquanto território brasileiro. No entanto, tais origens não foram encontradas, no lugar delas o que se achou foi uma rede interminável de discursos.

O passado inaugural glorioso, a identidade bem-aventurada e a anexação territorial epopeica, tudo, não passam de discursos. E se esses discursos circulam até hoje com o status de verdade, é porque existe uma política institucional para preservá-los como tal. Por isso, a história do Acre, da forma como vem sendo escrita e ensinada, mais deseduca do que educa. Ela não tem compromisso com o desenvolvimento do juízo crítico do cidadão acriano, pelo contrário, a missão dela é produzir ufanismo, alienação e pacificação social. Toda a glória desse passado imemorial pode ser resumida nisto: discursos, uma rede interminável de discursos.


Publicado originalmente na página do autor: 
http://eduardoeginacarli.blogspot.com.br/ 

POEMAS DE TEREZINHA MIGUÉIS PASSOS

TEREZINHA MIGUÉIS PASSOS (1941-2000) acreana de Rio Branco, professora, educadora, poeta e escritora. Escreveu “Crendices consideradas, também, acreanas” (1987), “Poesias e textos, num mundo natural, sentimental e popular” (1981), “O caminhar do magistério” (1989), “Severino do Boi (contos regionais)” (1997) e “Vivendo, falando, amando, através de poemas” (2000). Foi professora da Universidade Federal do Acre (Ufac) por cerca de vinte e cinco anos, atuou como diretora de ensino de primeiro grau na Secretaria de Estado da Educação e foi chefe do Departamento de Letras da Ufac. Duas escolas levam seu nome na cidade de Rio Branco, uma na zona rural, em Vila Verde, Km 58 da Estrada Transacreana; e a outra, no Bairro Quinze, segundo distrito.


JUNTOS 
Terezinha Miguéis Passos 

Estamos juntos,
juntos, sempre juntos.
Ninguém te levará,
ninguém te tocará.
Eu juro,
eu te prometo.
Aqui no meu peito,
és meu, só meu.
Estamos juntos,
estaremos juntos
sempre juntos,
dentro do meu ser
dentro do meu viver.


OUTRO MUNDO; OUTRA GENTE 
(1984 – Acre) 
Terezinha Miguéis Passos 

Como eu aprendi!
Foi outra ida.
É outro mundo,
é outra vida!

Cidade,
cidade de muita gente!
Mas essa,
é bem mais carente!

Humildes,
decentes e sem maldade.
Como essa, deveria ser
a nossa sociedade!


FINURA 
Terezinha Miguéis Passos 

A gente se educa,
a gente se afina.
Então...,
como arruína!

Defeitos prá lá,
defeitos prá cá,
tudo fica num vai e vem.
Se muito titubear,
O amor vai também!


REFLEXÃO 
Terezinha Miguéis Passos 

Sentada na ponte
vejo a fundo
todo o meu mundo!

Sentada na ponte
vejo reluzir
todo o meu ferir!

Sentada na ponte
vejo espelhar
todo o meu amar!

Sentada na ponte
vejo com fulgor
toda a minha dor!

Sentada na ponte
vejo no além... muito além...
Um rosto... De quem?


A VOLTA 
Terezinha Miguéis Passos 

Eu te vejo
Longe, bem longe...
Pisando, pisando...
Voltando.

Eu sinto o teu cheiro
Fragmentado, frágil...
Chegando, chegando...
Voltando.

Eu te sinto
Eu te aperto...
Num abraçar, num abraçar...
Chorando, chorando...
Sonhando!


DISTÂNCIA 
Terezinha Miguéis Passos 

Longe de tudo,
longe todos.
Amigos vêm,
amigos vão.
É um vai-e-vem sem fim,
nessa vida sofrida,
nessa vida querida,
nessa vida vivida,
vida vencida. 


PASSOS, Terezinha Miguéis. Poesias e textos, num mundo natural, sentimental e popular. Rio de Janeiro: 1988. p..54, 56, 58 e 68
PASSOS, Terezinha Miguéis. Vivendo, falando, amando, através de poemas. Rio Branco: BOBGRAF Editora Preview Ltda, 2000. p.26 e 64

quinta-feira, 19 de maio de 2016

VITÓRIA-RÉGIA

Humberto de Campos (1886-1934)
Foto: Marcus Vinicius Lameiras


No teu corpo de flor trepida e estua 
Todo o forte esplendor, toda a grandeza 
            Desta terra, que é tua. 

            Sempre que te vejo, creio 
            Que esta gloriosa Natureza 
Da Amazônia, a enciumar terras e espaços, 
            Te acalentou em seus braços, 
            Deu-te o leite do seu seio. 

            No mundo heleno, 
Em um mito qualquer, tão doce quão perfeito 
Muitas vezes se viu a Terra pondo o peito 
            À boca de um deus pequeno. 

            Assim, também, num símbolo plutônico, 
               Eu, numa lenda, te poria 
               Sobre o seio amazônico, 
            Para compor outra Mitologia. 

            Copiaste a esta terra 
O que ela, quando expande 
Sua alma e vigor, encerra 
            De belo de grande.

* 
*  *

Exemplo: 
                        Na pompa egrégia 
Do teu porte alto e risonho, 
Tu és a Vitória-régia 
Do lago azul do meu Sonho!

A água é muda e quieta... 
Vida nenhuma seu dorso anima: 
Nenhuma borboleta, 
Nem uma asa, por cima... 
                                               Apenas, 
Enquanto o lago, num mistério, sonha, 
Voga, cheia de sol, pelas águas serenas, 
A ninfeácea tristonha...

É somente uma folha. 
É, apenas, a lembrar uma selva redonda, 
Um círculo que ninguém olha, 
Uma folha sem flor que à luz lhe corresponda. 

Chega, porém, o dia 
            Fatal; 
Chega o momento em que a monotonia 
Foge e em que, forte e mortal, 
A Natureza vem, e lenta, 
Babuja a equórea planície 
A espantar muda e mágoa: 
E logo uma flor rebenta 
À superfície 
D’água!

Rebenta... Porém, rebenta 
Rugando do lago a face, 
Dando à Solidão, 
Com a mesma força violenta 
Do amor sincero que nasce 
Do fundo de um coração!

E logo por todo lago 
Há um forte estremecimento; 
No mais amoroso afago, 
            – A asa do Vento 
            Macio, 
Leva a branda água encrespada, 
Num sonoro arrepio, 
Às canaranas frágeis da beirada...

E a flor emerge, alva e nua, 
No seu esplendor estranho, 
Sem que haja outra que possua 
Seu perfume e seu tamanho!

E domina, em roda, 
                                   Tudo. 
A imperar sobre a água toda, 
Aberto o seio alvo e mudo 
À carícia materna do luar, 
Sabendo que, em si, resume 
A pátria onde floresce, enche com o seu perfume 
As margens, a água, a terra, a lua, as folhas, o ar...

* 
*  *

Já vês que, na pompa egrégia 
Do teu porte alto e risonho, 
Tu é a Vitória-régia 
Do lago azul do meu Sonho! 


CAMPOS, Humberto de. Poesias Completas. São Paulo: Opus, 1983. p.285-288