“Só deixo o meu Cariri,
no último pau de arara,
Enquanto a minha vaquinha,
Tiver o couro e o osso,
e puder com o chocalho,
Pendurado no pescoço,
Eu vou ficando por aqui...”
A
música de, José Guimarães, Corumba e Venâncio, que foi cantada por Luiz Gonzaga
e Fagner, entre outros grandes cantores da música nordestina, que trago um
pequeno trecho, abrindo esse capítulo, faz parte do meu imaginário infantil. A
música deu asas ao pensamento, que ficava como dunas, ao sabor do vento,
fazendo e desfazendo imagens sobre o Nordeste brasileiro, especialmente o
Ceará, antes de eu conhecer aquele pedaço do Brasil.
Assim como a música, os livros,
O Quinze, de Raquel de Queiroz e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, colaboraram
com o sentimento de carinho com aquela região bonita e de sofrimento humano. É
a arte e a literatura dando beleza na representação do sofrimento humano. Tais
obras, a qualquer leitor, mesmo aquele que nunca tenha pisado o sertão, faz sentir
a aridez do ambiente, o sofrimento e apego dos sertanejos ao lugar, bem como,
desperta curiosidade de desvendar quais são os motivos que fazem o sertanejo
ali permanecer em meio a tanto sofrimento.
Completando a lista dos escritores
que construíram o meu imaginário sobre o sertão nordestino, destaco o poeta
cearense, Fernando de Castela, que por muitos dias de nossa infância - minha e
de meus irmãos - ilustrou com seus poemas e causos, a vida das famílias, na
peleja com a seca, a roça que não vinga e o gado que perece. Assim como as histórias
das longas caminhadas pela caatinga, de homens sem esperança, com seus filhos
desfigurados pela fome, de mulheres que têm os rostos tão áridos, quanto as
gretas de concreção que se formam no chão daquelas terras. É a chuva, um dos
motes da poesia matuta, de Fernando de Castela, que nos faz entender um
pouquinho daquele lugar:
“…Ta
chuvendo em minha terra!
Chove
no meu Ceará...
Meus
irmão arretirante
qui
fugiro do sertão
tão
vortando em arvoroço.
Festa
de viola e sanfona
dentro
dos seus coração.
Tá
chuvendo em minha terra,
tá
chuvendo no sertão…”
As pessoas resistem à espera da chuva,
enganam-se com o desejo de uma nova aurora, partem, mas afirmam que retornarão
para casa se a chuva cair... Quimeras, apenas quimeras. Elas não deixam o seu
cantinho, enquanto há um fio de esperança. Mas por que é assim? Essa intrigante
pergunta que muitos devem fazer e que eu me fiz sempre, foi encontrando
respostas ao longo da vida e de forma mais aprofundada, quando visitei o
Cariri. Mas nem tudo tem resposta e outras perguntas surgem.
Aquele lugar árido, que a
plantação não vinga, que a criação morre, que as crianças choram de fome, tem o
mesmo encanto, riqueza e beleza, para o sertanejo, assim como tem para as
pessoas que nasceram e vivem, num lugar de fartura. A nossa aldeia, seja no
Cariri, seja na Amazônia ou no litoral do Ceará, é o lugar que alimenta os
sonhos e que convida os filhos a ficarem. Para quem é do Cariri, é lá que se
adquire o sentido de pertencimento e de identidade com aquele todo, seja o
prazer ou a dor. São estes alguns dos fatores, não determinantes, mas hierarquicamente
superiores, para a decisão de não partir.
Ao longo da viagem, outros
momentos e questionamentos fortaleceram a compreensão de pertencimentos, como
aconteceu quando alguém me perguntou - o que tem de interessante no Acre para
se visitar? Qual é o atrativo turístico que convida os visitantes? Parei por um
instante, depois de pensar na família e nas pessoas amigas, rapidamente o meu
pensamento percorreu florestas, que tantas vezes admirei e que me inspiraram a
escrever poemas, igarapés que me refrescaram nas horas de lazer, de tantos fins
de semanas, o rio da minha aldeia, hoje assoreado e poluído, mas foi dele,
antes de tanta poluição, que emergiram ideias, para o trabalho e para o lazer.
Continuei listando
mentalmente, as incontáveis horas de banhos no rio, alheia à preocupação da
minha mãe e dos riscos prováveis, movida pela ânsia de brincar, juntamente com
outras crianças, as trocas, pois as brincadeiras das crianças dão sentido ao
rio. As praias do centro da cidade, hoje não são mais apropriadas ao banho, mas
foi nelas que eu brinquei, antes de serem descoloridas pelos esgotos. Quando
olho para as praias hoje, vejo o passado e idealizo o futuro.
A infinidade de sentidos vai
além do rio, está também nas comidas, nas praças, ruas… Tudo do lugar, é a
referência e parâmetro, até mesmo para me sentir em casa, em qualquer outro
lugar do mundo, o que pode parecer contraditório. É por isso, que o nordestino
só deixa o seu “Cariri no último pau de arara”.
A região do Cariri, assim
como muitas outras por onde passamos, tem denominação de origem indígena. O
povo Kariri ou Quiriri, embora tenha resistido e lutado contra os invasores, foi
escravizado, roubado e morto. Seus territórios foram ocupados pelas cidades,
atualmente com várias denominações indígenas.
A região do Cariri abriga um
importante sítio arqueológico, onde se encontra soterrada, grande parte da
história dos Kariri, juntamente com a cerâmica e outros de seus utensílios.
Muitas dessas peças de cerâmica, extraídas do sítio arqueológico estão expostas
nos centros culturais, constituindo importante atrativo turístico. Quanta
contradição!
O Cariri foi o sítio por nós
escolhido para sentir um pouco da vida do sertão do Ceará. Mas a região abrange
também, alguns municípios de Pernambuco, Paraíba e Piauí. Dos nove municípios
do Ceará que integram a Região Metropolitana do Cariri, visitamos apenas quatro
cidades. O Crato foi o local escolhido para pouso, face à centralidade, em
relação às demais cidades visitadas - Juazeiro do Norte, Nova Olinda e Santana
do Cariri - onde fatos interessantes ilustraram nossos dias, justificando o
registro.
Figura 16 - Mapa da Região do Cariri,
Ceará
Fonte: Pesquisa Imagens Google, 2016
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Para andar no rastro dos
antepassados, que vieram do Ceará para o Acre, foi como se eu tivesse ido à
“escavação arqueológica” sem instrumentos adequados, por não dispor de
referências, na procura de vestígios que identificassem minhas ligações com
eles, foi algo quixotesco. Não elaborei
nenhum projeto de pesquisa, nem sequer um roteiro para isso, tudo foi feito no
campo das elucubrações. O instrumento investigativo, que considerei uma
brincadeira, foi a percepção, os sentidos aguçados, para perceber qualquer
coisa que remetesse ao que ouvi quando criança. Comecei então, a estabelecer
uma relação das frutas com as pessoas e os fatos.
O meu pai dizia que no
quintal da sua casa, quando ele era criança tinha frutas que ele só poderia
comer se “roubasse” e citava as frutas. Já a minha mãe contava que ela e os
seus irmãos brincavam com as melancias, na praia do rio Iaco, jogando uma
contra outra para parti-la, comer e até desperdiçar. Minha mãe viveu em grande
fartura alimentar, sempre deu destaque a isso, diferente da vida do meu pai,
que sempre deu destaque a fome.
Seriguela, sapoti, umbu,
umbu-cajá, tamarindo… É como se eu quisesse ao comer a fruta, fazer uma viagem
ao passado através do paladar, desvendar os mistérios e destruir os hiatos deixados
pelo tempo, revelando histórias não contadas. Tudo ao sabor das frutas, como as
beberagens e o rapé dos pajés, trazer à luz, o que é preciso saber para a vida.
Mas
para que isso tudo? Talvez porque a
busca pela ancestralidade seja a tentativa de conhecer a nós próprios. Porém o
caminho da busca ancestral, às vezes é temeroso de ser inútil, de continuar
incompreendido, de poder nos levar a um passado mais profundo, no momento que
não encontramos as respostas. O melhor é desfazer às dúvidas, o caminho do
conhecimento é hipotético. As reflexões surgiram quando cheguei ao Ceará, mas
eu apenas segui, elas foram aprofundadas ao escrever.
Leiam aqui as crônicas anteriores:
- Primeira: O início é no Cai N’Água
- Segunda: Capitais da borracha
- Terceira: A “Pérola do Tapajós”
- Quarta: Uma noite de medos e macacos
- Quinta: Infâncias roubadas na Amazônia
Umbu e sapoti ...minha memória olfativa de Juazeiro do Norte, do tempo da primeira infância,bem antes da primeira comunhão católica ...a comunhão com a terra...
ResponderExcluirUm dia Mario Palmério resolveu fazer um relatório acerca de alguns acontecimentos no interior de Minas Gerais. O relatório continha Crônicas muito ricas em detalhes como essas suas, Eliana! Por fim o Mario Palmério optou por transformar o relatório, com seu conjunto de Crônicas, em um Romance. Nasceu, assim, Vila dos Confins que, não por acaso, se tornou o meu Romance predileto por causa da riqueza de detalhes... Estou aqui viajando com vocês e percebendo o nascimento de um best-seller...
ResponderExcluirQuando era adolescente li dois livros que me impressionaram vivamente: um 'Vidas Secas' de Graciliano Ramos, o outro 'Sertões' de Euclides da Cunha. Ambos foram o meu contacto inicial com a realidade Nordestina. Hoje, Eliana, com esta crónica voltei a sentir a crueza da terra, os seus cheiros, a falta de água e a luta desse povo sofrido, que resiste sempre e que só em situações extremas 'deixa o seu Cariri no último pau-de-arara' e vou juntá-la aos livros acima mencionados.
ResponderExcluirExcelente, excelente crónica, Eliana! Parabéns.
Reinaldo