Eliana Ferreira de Castela
Não é muito comum na
atualidade, uma loja que vende, por exemplo, frango abatido e confecções, ou
material de pesca e roupas de cama. Mas tal prática era bastante comum no
passado que já vai longe, quando os transportes eram escassos ou inexistentes
em determinados povoados que ficavam isolados em pequenas localidades. Embora muitas
pessoas no nosso país, ainda vivam no isolamento e com dificuldades de acesso,
houve uma modernização no comércio em quase todas as localidades, mesmo as isoladas.
Antes não havia comércio especializado, vendia-se de tudo num único
estabelecimento, como se diz na gíria, “de alfinete a foguete”. Mas tal prática
cabe muito bem em determinadas situações, como é o caso da Feira de Caruaru, no
Estado de Pernambuco.
A cidade e a Feira de Caruaru se confundem.
Surgiram no século XVIII, a partir de uma fazenda que servia de apoio aos
tropeiros, vaqueiros e outros viajantes, onde se constituiu um comércio que,
inicialmente vendia produtos destinados à pecuária e à agricultura. A cidade
surgiu em torno da Feira que foi evoluindo com o tempo, ampliando a oferta cada
vez mais diversificada de produtos. Na atualidade a Feira de Caruaru ainda
abriga a característica dos comércios antigos, vende-se de tudo, porém de
maneira setorizada, dividida por áreas específicas, onde se pode encontrar -
frutas, cereais, calçados, roupas, móveis, ferragens, animais, miudezas,
eletrônicos, importados...
Feira de Caruaru
Fotos:
Oliveira de Castela, 2015 |
Feira de Caruaru
Fotos:
Oliveira de Castela, 2015 |
Uma
variedade extensa e refinada de artesanato em couro, palha, cipó, tecidos de
algodão, renda, cerâmica, entre outros produtos enche os olhos dos visitantes.
A parte do artesanato pode ser considerada a mais nobre da feira, por se tratar
de uma produção local. O espaço abriga também, lanchonetes e restaurantes, que
servem comidas típicas da região. Vale registrar que muitas dessas comidas são
típicas também no Acre. Foi na Feira de Caruaru que compramos rapadura, já era
sem tempo… Onde já se viu andar pela região sem comer rapadura com queijo? Foi
na Feira de Caruaru que eu vi um dos mais exóticos alimentos da região ou mesmo
do Brasil – bunda de tanajura.
O
alimento que considero estranho me fez lembrar que quando eu era adolescente,
chegou à rua que eu morava, uma família um pouco mais numerosa que a minha.
Composta pelo pai, mãe e nove filhos, oriunda do meio rural. Era década de
1970, tempo em que muitas famílias foram para as cidades, decorrente da
implantação da pecuária, nos antigos seringais que se encontravam desativados,
em função do fim da economia da borracha, conforme abordamos o tema nos
capítulos iniciais.
As terras do Acre foram
vendidas a “preço de banana”, as derrubadas de árvores e expulsão dos
posseiros, constituíram as primeiras providências, dos fazendeiros oriundos das
regiões Sul e Sudeste do país, como forma de “limpar a terra” para introduzir a
criação de bois. Os antigos seringueiros que já moravam há anos nessas terras,
deslocavam-se para as cidades em busca de outros meios de vida.
Foi através dos membros da família que foi
morar em nossa rua, que ouvi pela primeira vez alguém dizer que comia farofa de
bunda de tanajura. Na época eu nem conhecia a formiga. Decorridos quase
quarenta anos, e até chegar à Feira de Caruaru, quando eu vi pendurados numa banca,
vários sacos plásticos com o tal produto, só então constatei que o hábito ainda
se mantém.
Pacotes de bunda de formiga
tanajura
Foto:
Oliveira de Castela, 2015
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Para
o Jorge, comer bunda de tanajura não era novidade, tanto é que a primeira
cidade do Ceará que paramos foi Tianguá, local onde ele disse ter ficado por
cerca de trinta dias, quando ainda era bem jovem, jogando bola, tomando cachaça
e tirando o gosto com seriguela e farofa de bunda de tanajura. Mas quando lá
chegamos, só encontramos a seriguela, parece que outros alimentos proteicos
fizeram abandonar as tanajuras de Tianguá à outras sortes.
Em
Caruaru pudemos constatar o que diz a famosa música de Onildo Almeida
- “na feira de Caruaru, tem coisas pra gente
ver, de tudo que há no mundo, nela tem pra vender...”. Mesmo com tanta oferta tivemos que restringir
as compras à rapadura, queijo, biscoito e algumas frutas. Para mochileiros,
quanto menos peso melhor. Levamos da Feira, a imensa bagagem do aprendizado
colhido no colorido das imagens do artesanato e do trabalho dos feirantes.
Na saída da Feira, atravessamos uma ponte de
cenário desolador, onde tinha vendedores ambulantes, mendigos – uma jovem com
várias crianças, sentadas no chão - bêbados e transeuntes. Embaixo da ponte o
rio, na verdade um grande esgoto, com imensa população de quelônios que se
misturam aos dejetos, fervilhando na água, uns sobre os outros, causando
profundo mal-estar, ao ver gente e bichos em completo abandono, numa situação
degradante.
Quelônios em um rio poluído,
em frente a Feira de Caruaru
Foto:
Oliveira de Castela, 2015
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O
povo do barro
O
centro da cidade de Caruru é frenético, muita gente nas calçadas, trânsito
intenso, aglomerado de comércios, tudo se move. Estava na hora de dar um
descanso aos ouvidos e aos olhos. Tomamos um ônibus no turbulento centro e aos
poucos o movimento foi diminuindo. A mudança de ambiente do centro de Caruaru,
para o Alto do Moura foi como sair do inferno e ir para o céu, sem escala no
purgatório.
Nascido
em 1909, em Ribeira dos Campos, nas cercanias de Caruaru, Vitalino Pereira dos
Santos, o Mestre Vitalino, não tinha escolaridade, como tantas pessoas ainda
hoje, nos sertões do Brasil. Ele aprendeu a arte brincando com a sobra do barro
que a sua mãe, Dona Josefa Maria da Conceição, usava para fazer utensílios, ela
era louceira. Aos sete anos de idade Vitalino já ganhava dinheiro, com a
confecção de bichinhos como, bois, bodes, cavalos etc., que seu pai e o irmão
vendiam na feira de Caruaru.
Com
o passar do tempo, Vitalino fez de sua arte a representação do cotidiano das
pessoas do seu meio, confeccionando os retirantes, as festas, a morte e outras
peças que expressavam o caráter peculiar do mestre. Motivo que o destaca dos
demais artistas.
Mestre Vitalino fez discípulos e deixou
um legado para as gerações que fazem da arte da cerâmica, a vida. Ele fez de
sua casa, a escola de muitos. Além da característica singular de suas obras,
marca também o seu espírito harmônico,
na relação com os outros artistas, sem medo de concorrência, realizou um
trabalho de cooperação entre todos, tanto na confecção, quanto na venda das
peças. O mestre do barro deixou ensinamentos e despertou sensibilidade, para
outras artes como a música, da Banda Pau e Corda, de autoria de Paulo Fernando
e Roberto Andrade:
Pai de barro
Rei criador
Fez bonecos de barro
Com amor
Uh, uh, uh,
Uh, uh, uh
Vitalino de Caruaru
Pai João (cachimbando)
E Maria sentada batendo pilão
Zefinha contando seus bilros
E a renda estampada no papelão
Cavalo Marinho
O Bumba meu boi
E Vitalino, e Vitalino já se foi.
O que vimos no Alto do
Moura, não foi folclore e sim, uma atividade profissional abraçada pelos
moradores do lugar. Jovens e pais de famílias (homens e mulheres) que se
sustentam com o trabalho da cerâmica. Peças que são vendidas nas próprias casas
dos ceramistas, na feira de Caruaru e em outras cidades. Um trabalho que atende
ao mercado, mas que não perdeu o caráter lúdico no fazer artístico.
A casa do mestre Vitalino é hoje um museu,
que reúne informações sobre a sua vida, onde muitas peças confeccionadas por
ele e por membros de sua família estão em exposição. Severino Vitalino é filho
do mestre e responsável pela casa. Ele informou que mesmo hoje, acumulando a
atribuição administrativa do museu, ainda trabalha com a cerâmica, assim como
toda a sua família, filhos e a sua mulher são ceramistas.
Casa Museu Mestre Vitalino
Fotos:
Oliveira de Castela, 2015
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Casa Museu Mestre Vitalino
Fotos:
Oliveira de Castela, 2015
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Casa Museu Mestre Vitalino
Fotos:
Oliveira de Castela, 2015
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Passando
pelas ruas do bairro do Alto do Moura, observamos que o trabalho com o barro é
praticado por muitos moradores, que expõem peças na entrada das casas, para a
venda ou para ornamentar o ambiente. Além da casa do mestre Vitalino, visitamos
outra casa, onde um grupo de jovens, que aparentavam idade, em torno de vinte e
poucos anos, estavam ocupados na confecção de várias peças de cerâmica, em
miniatura.
Um dos rapazes, que era o
dono da oficina que funcionava na sua própria casa, conversou conosco e revelou
que muitas peças são feitas, não apenas pela inspiração artística, e sim para
atender a demanda do mercado. A fala dele demonstrou o desejo de poder ser
apenas um artista, produzir peças a partir de sua própria imaginação. Mas isso
não permite a manutenção financeira das famílias, o mercado tem a sua lei.
Antes de deixar o Alto do
Moura, almoçamos filé de bode, com macaxeira frita, num restaurante simples na
estrutura e fino no paladar, o que veio completar a satisfação, por conhecer a
obra e história de Vitalino e a peculiar realidade do povo do barro.
Leiam
aqui as crônicas anteriores:
-
Primeira: O início é no Cai N’Água
-
Segunda: Capitais da borracha
-
Terceira: A “Pérola do Tapajós”
- Quarta:
Uma noite de medos e macacos
- Quinta:
Infâncias roubadas na Amazônia
- Sétima:
O Cariri que nos habita
- Oitava:
De Fortaleza à Trairí é um pulo!
- Nona: Nova Olinda e Santana do Cariri
- Décima: Outras buscas no mesmo sentido
Ah! A Feira de Caruaru... Cheiros e sabores; risos e dores... Diversidade! Essas Feiras são Instituições que preservam a "alma de uma época"! Lembro a primeira vez em que fui à uma dessas Feiras em Ilhéus com a minha mãe. Ela me fez provar um pouco de sarapatel e buchada. Que coisas mais saborosas! Nos meus oito anos de idade nunca havia provado nada igual! Mas o que mais me marcou foi quando ela comprou uma galinha e o vendedor apenas amarrou as assas e as patas da mesma e me entregou. Achei que era uma brincadeira! Em segundos uma pequena multidão ria do meu medo de segurar aquele bicho vivo... Caruaru eu só conheci aos dezessete... Passava por lá quando ia à Fazenda Nova passar um tempinho com uma namorada... Curiosamente eu nunca me senti atraído pelas obras feitas de barro... Que bom poder visitar "virtualmente" essa Feira maravilhosa através das suas letras, minha amiga!
ResponderExcluirEm latitudes e longitudes diferentes também eu vi feiras semelhantes à Feira do Caruaru. Os artesãos que nelas participam são uns lutadores, diria mesmo resistentes que, com a sua arte sobrevivem e preservam a memória dos povos 'afastados' ou esquecidos, que vivem foram das grandes metrópoles. Mestre Vitalino é o mais conhecido, mas outros ainda o continuam, felizmente.
ResponderExcluirObrigado, Eliana, por não deixares morrer essa memória.
Reinaldo