sábado, 5 de novembro de 2016

NO PALCO

Eliana Castela


O número da casa é 427, de certa rua, de Casimiro de Abreu, mas o que isso tem a ver, quando nada entendo sobre numerologia? É que o número foi o Braga quem pintou e foi lá que aconteceu um espetáculo único, com no mínimo cinco horas de duração. Jorge Carlos, Francisco Braga e eu, ora atuávamos juntos e ora um ou dois subia ao palco. Nós três trouxemos as recordações que representaram vivências de Fortaleza, Rio Branco, Xapuri, Maringá, Vila Velha e até o Rio de Janeiro, por conta da peça, “Coisas do Acre da Velha”. Em nenhum momento faltou ator no palco ou plateia, por isso foi teatro.

Abriu a cortina e uma tênue luz que crescia, em gelatinas, de cores criteriosamente selecionadas faziam par ao suave som, da doce flauta do João Veras.  Representamos lembranças que na maior parte do tempo, concentraram-se no Teatro de Arena do Sesc/AC. E num revez do tempo, ia-se até  a resistência, do Teatro Horta, do grupo Semente. Tomados pela emoção como, “Navalha na Carne” trouxemos ao palco recordações de Marília Bonfim e Ivan de Castela que, naquela noite, receberam o prêmio de melhor atriz e melhor ator.

O texto improvisado e sem revisão, trazia muitos nomes como, os dramaturgos João das Neves, Lourdes Ramalho, Lenício Queiroga… Diretores como, Betho Rocha, Zé Antonio, Kikha Dantas… Atores como, Bruxinha, Izabel de Castela, Pimentinha, Mário Jorge, o mecânico Milton, Rogério Curtura, Françoise Pessoa, Lenine Alencar, Socorro Paiva, Sandro Lustosa... E claro, os Farias - Silene  César, Cícero e Mariana. Os artistas plásticos que também subiram aos palcos acreanos como Bab Franca, Danilo de S’Acre e Dalmir Ferreira. Na sonoplastia Elias Junior, Sérgio Souto e Carlos Kawahara, estes também foram premiados. Dentre os profissionais das artes cênicas foi citado por diversas vezes o baiano, coreógrafo e fotógrafo, Antonio de Alcântara que dividiu com o Braga o aluguel de uma casa onde moraram, por cerca de quatro anos, sem nenhuma relação sentimental, e incrível, sem nenhum aborrecimento entre as partes. 

Braga caricaturava lembranças, os riscos e os rabiscos de punho firme e memória lúcida  pareciam desfiar um novelo de lã, de muitas ovelhas tosquiadas para vestir o mesmo motivo, o teatro, o que encenamos naquela noite. A memória de elefante do Jorge Carlos ia trazendo ao palco um número cada vez maior de profissionais, de um tempo que o teatro exigia além de representar. Eu já começava a me preocupar com o cachê para tanta gente, mas lembrei, era tudo grátis.

O relato da construção do texto “Tempo de Solidão”, escrito por Francisco Braga e Dinho Gonçalves era feito por etapas, a cena trazia ao palco a experiência de um ano de trabalho dos dois.  Por sua atuação no teatro, Dinho Gonçalves, o palhaço Tenorino recebeu o prêmio por melhor produção.

Podemos afirmar que tudo foi comédia, pois nossas gargalhadas infringiram a lei do silêncio, obrigando Rosa, da janela, exalar seu perfume, num pedido suplicante – Falem mais baixo, senão vão incomodar os vizinhos! Eu e o Jorge quase morremos de vergonha, pois vivemos criticando quem rompe o silêncio alheio com suas particularidades. Foi pura distração, talvez porque o espetáculo não era só nosso, o Braga era culpado de tudo.

Como disse antes, no texto tinha atores, diretores, músicos, escritores, jornalistas, políticos, poetas, todos invocados pela nossa memória. Como era na terra do poeta Casimiro de Abreu, outros poetas compareceram, Augusto dos Anjos com sua obra “Eu”. Drummond aos tropeços com as pedras de seu caminho que, fez o Jorge ler o “sonito”, poema que escrevemos juntos e que também é cheio de pedras. Fernando de Castela, porque seus poemas trazem saudades de sua terra, saudades de seu Ceará. E toda vez que se dava “brecha”, Jessier Quirino entrava com o refrão – “Isso é cagado e cuspido, paisagem do interior”.

Muita gente circulou No Palco, naquela noite de primeiro de novembro. Dia que, para nós,  não foi só de todos os santos, mas também de todos os artistas que nos vieram à memória. Eles foram lembrados com carinho, até aqueles de difícil convivência. Não é por ter sido dia de todos os santos, mas não falamos mal de ninguém… Debaixo dos caracóis dos meus cabelos, a mente agora ferve na tentativa de lembrar a trupe que participou do Palco e arrancou de nós gargalhadas. Agora, fora do palco, temo ter esquecido o texto e deixado alguém fora da lista.

Em cena, entrou também fragmentos cinematográficos, afinal o Braga atuou numa filmagem, da emissora de TV Al Jazira, em Xapuri – AC, alguém duvida? Pois não duvide, o Acre é metido à besta,  tudo é possível.  Outras cenas arrancaram menos risos, como os fragmentos do cotidiano jornalístico, passados nos jornais, “O Rio Branco” e o “Página 20”, no período que fazia os cartunistas, quase perderem a animação, face ao risco da motosserra que ameaçava qualquer “cheirinho” de denúncia.

Nos entre atos, um suspiro, ah Soraya...

No dia seguinte, dois de novembro, o sol brilhou de tal forma que nada lembrava o choroso dia dos mortos, pelo contrário, convidava à caminhada para observar as belezas da Barra do São João, a praça “As Primaveras”, o Museu que abriga memórias da vida do poeta Casimiro de Abreu, sua estátua à margem do Rio São João, a Ponte Quebrada e por fim a Capela de São João Batista, que fica num pequeno morro. Subimos as escadarias da Capela, em busca de um ângulo para fazer algumas fotos, mas acabamos indo parar dentro do cemitério que fica muito bem localizado para apreciar a paisagem, uma morada da qual o Braga disse, não fazer “impem”.

De volta para casa, ao longo da estrada o silêncio era do cansaço do sol e da saudade do Palco. Para mim e para o Jorge não resta dúvida, o cartunista Braga é um astro de infinita grandeza. Eu subirei no palco mil vezes, para contracenar com aquele nordestino talentoso, cheio de simplicidade e castigado pela “marvada pinga”, a mesma que dá a ele a alegria de um palhaço no picadeiro. 

Vá entender o que é a vida, pra ver se você não fica louco, seu moço...

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