José Galvão, mais conhecido como Cara
Cortada, era caçador e comboieiro dos bons. Muito conhecido na região do Alto
Acre, entre os municípios de Xapuri e Brasiléia, Zé era um amante devotado de
birinaites, tomava cocal como quem toma água. Quando dava de ocorrer à falta da
cocal, tomava álcool e na falta deste tomava até extrato, espécie de água
perfumada que as mulheres e os homens usavam quando saiam para os arrasta-pés
que aconteciam na casa de Zé Brejense, sanfoneiro dos bons ou no barracão da
sede do seringal, todo final de mês.
João Tibúrcio, um masclador de tabaco
inveterado, pernambucano, contava que Zé Galvão era homem valente e quando
estava de fogo dava correria em bolivianos que, sem alternativa, atiravam-se
nas águas barrentas do rio e o atravessavam a nado, de volta pra terra mãe,
Cobija, cidadezinha boliviana que fica na outra margem do Rio Acre, sob pena de
serem espocados no tapa pelo já caldeado e intolerante Zé Galvão. E foi
exatamente numa dessas correrias que um boliviano mais afoito riscou de faca às
foices do Zé. Por conta disso é que o Zé Galvão passou a ser apelidado de Cara
Cortada. No início não gostava, invocava-se, irava-se, reagia forte, depois foi
se acostumando até nem mais ligar. Ele e Chico Sansão, amigos de muitos
janeiros, tocavam um comboio formado por quatro burras e quatro jumentos, dez
animais ao todo, contando com as burras que serviam de montaria para os dois.
O comboio era o único meio de transporte de
carga e pessoas naquelas paragens, principalmente doentes, deslocando-se nos
varadouros das colocações de seringa para a margem do rio, onde ficava a sede
do seringal.
Na sede do seringal destacavam-se a
suntuosidade da casa do seringalista e o barracão, onde ficavam armazenadas as
mercadorias que serviam de aviamento para a seringueirada que morava nas
dezenas de colocações do seringal. Transportar mercadorias do barracão para
aviar os seringueiros que moravam em barracos encravados no meio da mata, bem
próximo das estradas de seringa e retornar com carregamento de borracha, era a
principal função do comboio.
No seringal as mercadorias eram
comercializadas a peso de ouro. Era uma carestia danada, proposital, para
endividar a mais não poder os seringueiros e assim prendê-los por mais tempo
nas colocações cortando seringa e produzindo borracha para o dono do seringal.
Muitos trabalhavam até aos domingos na esperança de juntar um bom dinheiro e
voltar pra casa, para o seio da família e da terra natal, longe de imaginar que
esse sonho terminaria de forma trágica, traiçoeira, motivada pela ganância e
pela maldade do seringalista e de seus jagunços...
Os exércitos de seringueiros eram compostos
em sua maioria de migrantes nordestinos, principalmente cearenses e
pernambucanos, que foram batizados pelos “gatos” e pelos seringalistas de
arigós, em razão do total desconhecimento da forma de vida no meio da mata
virgem. Dezenas morreram à míngua, vítimas de malária, picadas de animais
peçonhentos e ataques de onças, durante os cortes de seringa. Viviam em
condições subumanas, em regime de escravidão, totalmente desguarnecidos e
ignorados pelas leis e pelos governos estadual e federal. Não tinham sequer o
direito de ter mulher como companhia, nem de caçar, pescar, botar roçado de
arroz, feijão, milho, macaxeira, para, segundo a lógica gananciosa dos patrões
seringalistas, terem mais tempo para se dedicar ao corte da seringa.
Muitos dos que hoje recebem pensões de
ex-seringueiros, que de uns tempos pra cá foram justamente reconhecidos por lei
federal como soldados da borracha, ignoram completamente o sofrimento brutal a
que foram submetidos os seus ancestrais.
Contam os mais antigos, que desse modo
selvagem de produção geralmente advinham duas graves consequências: 1. O total
endividamento com o patrão, em virtude do alto preço das mercadorias vendidas
no barracão; 2. Prolongados períodos de abstinência sexual, motivos pelos quais
alguns dos cabras, não mais suportando o martírio, viam-se obrigados a fazer
sexo com animais ou então a furar buracos nas bananeiras onde enfiavam o
“trabuco” em movimentos de vai e vem... Alguns chegavam até a amancebar-se com
jumentas, alimentando pelas mesmas um amor incontido e um ciúme doentio.
Arroyo, um índio velho que por muitos anos
morou em seringal, contou-me que numa certa madrugada ouviu uma voz rouca que
vinha de trás do barracão, que dizia: cara comprida me dá um beijo, cara
comprida eu só não te dou um sapato porque tu tem o pé redondo...
Pois bem, Zé Galvão e Chico Sansão tocavam
mais um comboio pelo eixo do varadouro, quando de repente avistaram um
quatipuru vermelho saltando de um lado pro outro do varadouro. Zé Galvão deu de
mão ao rifle e amolegou o dedo, o quatipuru caiu. Chico Sansão amarrou com
envira o quatipuru na barrigueira da sela da burra, e continuaram tocando o
comboio. O tira-gosto estava garantido.
Vinte minutos depois, quiçá estimulado pelo
trote da burra, o quatipuru despertou e danou-se a morder o vazio da burra,
que, saltando e coiceando, desabou relinchando tabocal adentro, totalmente
desgovernada.
Uma hora depois Zé Galvão conseguiu chegar à
beira duma antiga vertente onde enxergou a burra bebendo água e, logo ao lado,
Chico Sansão estendido em cima duma tábua velha de lavar roupa, com o rosto e
os braços lavados de sangue, esguichado dos sulcos causados pelos espinhos de
taboca e arranha-gato durante o desembestar da burra mordida pelo quatipuru. Na
mão, Chico Sansão mantinha fortemente apertado o quatipuru vermelho causador de
todo aquele rebuliço, agora sim, mortinho da silva, por asfixia!
Zé Galvão, tentando conter o riso, perguntou
ao Chico Sansão se poderia fazer fogo pra ferver água pra pelar o quatipuru.
Vendo a cara de gozação de Zé Galvão, Chico Sansão esticou o braço direito no rumo dele e, sufocando os gemidos de dor, respondeu ao Zé com um cotoco bem dado!
Vendo a cara de gozação de Zé Galvão, Chico Sansão esticou o braço direito no rumo dele e, sufocando os gemidos de dor, respondeu ao Zé com um cotoco bem dado!
FRANCISCO ANTÔNIO SARAIVA FARIAS, natural de Manoel Urbano-AC. Especialista
em Gestão Administrativa na Educação. Servidor Público Federal, Técnico em
Assuntos Educacionais. Pró-Reitor de Administração da Universidade Federal do
Acre - UFAC, no período 2000-2012. Autor de poesias, crônicas e contos.
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