Selecionamos, e
publicamos abaixo, algumas poesias de “POESIA JOVEM – ANOS 70”, livro com
seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico de Heloísa
Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder Pereira. “Com os jovens poetas
anos 70, a poesia perde a pompa e a solenidade. Explora todas as possibilidades
do papel – folhetos, jornais, revistas, manuscritos. Chega aos muros, sobe aos
palcos, vai às praças, alia-se à música popular, organiza exposições. Mais que
uma manifestação de denúncia e protesto, a poesia jovem foi uma explosão da
literatura, jogando para o ar padrões poéticos, o que lhe valeu, inclusive, o
nome poesia marginal. A profusão de grupos e movimentos poéticos revelou a
necessidade de mudanças no fazer poético e, certamente, gerou nomes que se
firmarão como grandes poetas.”
Abrindo Parêntesis
Sérgio Gama
e aqui eu abriria
um parêntesis
para, de todo
coração,
pedir perdão a
vocês,
queridos leitores,
pois o que me resta
de bom senso
(eu que me perdi
olhando estrelas)
não me permite
contar senão
a parte mais
superficial, geral, abstrata
(a barra mais leve,
enfim)
de nossas “fantásticas
fascinantes
eletrizantes
aventuras”;
sinceramente, é uma
pena,
eu adoraria
escrevê-las;
mas, pelos motivos
que vocês já devem estar imaginando,
por enquanto não dá
pé mesmo,
fica para outra vez
(e talvez seja
melhor assim;
talvez, se eu vos contasse,
vocês nem
me acreditariam... p.12
Cidade
Francisco Alvim
Poesia –
espinha dorsal
Não te quero
fezes
nem flores
Quero-te aberta
para o que der
e vier p.12
Idílica Estudantil –
III
Alex Polari
Nossa geração teve
pouco tempo
começou pelo fim
mas foi bela nossa
procura
ah! Moça, como foi
bela a nossa procura
mesmo com tanta
ilusão perdida
quebrada,
mesmo com tanto
caco de sonho
onde até hoje
a gente se corta. p.12
Cogito
Torquato Nelo
eu sou como eu sou
pronome
pessoal
intransferível
do homem que
iniciei
na medida do
possível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes
segredos dantes
sem novos secretos
dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado
indecente
feito um pedaço de
mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo
tranquilamente
todas as horas do
fim. p.16
Formandos: 1976
André Andries
Debaixo do oiti
centenário
sob um céu nebuloso
e frios ventos
ele
disse de si para
si:
hoje, somos uma
geração amargurada, pagando
prestações de uma
dívida que não fizemos. p.21
Vitalidade
Ledusha
a palavra na ponta
da língua
o sonho de Penélope
numa piscada safada
mato a pulga atrás da
orelha.
destraço o desenho
espelhado
alcanço de leve o
som
à sombra de cada
sílaba
repiso o caminho do
sol
desperdiçando
emoção
no susto de cada
esquina
desfaço o nó da
garganta
calço
sandálias-bebete
digo eu não sou de
ferro
& caio matando.
p.22
RECEITA
Nicolas Behr
Ingredientes
2 conflitos de
gerações
4 esperanças
perdidas
3 litros de sangue
fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos
beatles
Modo de preparar
dissolva os sonhos
eróticos
nos dois litros de
sangue fervido
e deixe gelar seu
coração
leve a mistura ao
fogo
adicionando dois
conflitos
de gerações às
esperanças
perdidas
corte tudo em
pedacinhos
e repita com as
canções dos
beatles o mesmo
processo usado
com os sonhos
eróticos mas desta
vez deixe ferver um
pouco mais e
mexa até dissolver
parte do sangue
poder ser
substituído por
suco de
groselha mas os
resultados
não serão os mesmos
sirva o poema
simples
ou com ilusões p.25
RÁPIDO E RASTEIRO
Chacal
vai ter uma festa
que eu vou
dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro,
tiro o sapato
e danço o resto da vida. p.78
--
ano que vem eu me
caso
ano que vem eu
compro um fusca
ano que vem eu
termino a faculdade
ano que vem eu vou
mudar de vida
e morar no andar de cima p.78
Nicolas Behr
--
Comunista
Tavinho Paes
além de política
você não se
interessa por
ballé? P.84
Chão de Estrelas
Tanussi Cardoso
Barracão de zinco.
Três tiros no peito
ela jaz estirado.
Na vitrola, Sílvio
Caldas
emocionado. p.84
Quase Prefácio
Franklin Jorge
Diante de tudo
isto,
os beletristas
hão de censurar,
no mínimo,
a minha falta
de estilo. p.85
Eros c’est la Vie
André Bueno
a carne é sábia
já sabia o sabiá
que foi comer
o tico / tico
no fubá. p.87
Breve Biografia
Domingos Pellegrini
Jr.
E entre ortodoxos e
marxistas
perdi as cuecas
brancas do idealismo
Clandestino tomei
livre trens escuros
e em bairros tortos
desci – Eu
O engolidor de
facas filosóficas
Mastigador de
giletes políticas
Magarefe dos
próprios quixotismos
um por um até a luz
da madureza
Desencontrado de
ilustres conselheiros
encontrei batatas
quentes e amigos sinceros
e acendemos a luz
na encruzilhada.
Perdemos a fé nas
trajetórias retas
As curvas povoaram
nossos horizontes
O caminho passa por
muitas estradas p.90
Dias Roubados
Sidnei Cruz
Faz frio nos meus
olhos...
o relógio da
Central
pulsa em meu peito
marcando a jornada
dos operários
no inferno das
marmitas.
– É a gangrena
na madrugada do lobo.
Ajeito o coração
sob o casaco
e deslizo a mão no
ar
cicatrizando o
vento
com a brasa do
cigarro.
Aperto os
documentos na bolsa
e os ossos moídos
buzinam baixinho
com medo do guarda
de trânsito.
– É mais um dia que
não me pertence,
é mais um dia que
não me pertenço. p.92
Poemar
Jorge de Almeida
O poeta,
que vai armado para
o poema
não apreende
suas múltiplas
armas
Navegar no poema,
só a vela solta
p.93
--
em cada pirado
em cada pivete
em cada malandro
em cada suicida
em cada
sub/urbanoide
eu vejo
todo o
seu esplendor
escorrendo pelos
bueiros
desta
cidade vazia
– meu único
congo... p.94
Adauto
--
De
Leve
Ledusha
feminista
sábado domingo segunda terça quarta quinta e na sexta
lobiswoman.
p.95
--
Basta de
cristandade
de santidade
de moralidade
Obscuridade
Desejo a
obscenidade
a oleosidade
a realidade
Desde essa idade
curto Marquês de
Sade
me arde antes que
seja tarde. p.95
Cristina Ohana
--
Amor e Dor
Maria Rita Kehl
Quanto mais você
demora
mais me assalta.
Depois
não sei se quero o
homem que me chega
ou o que me
falta. p.96
Estabilidade
Leila Miccolis
Vivemos como casal:
você trabalha
demais,
me sustenta,
proíbe isso e
aquilo,
exige a casa
arrumada,
quer o almoço à uma
hora,
o jantar às sete e
meia,
sobremesas
variadas...
com teus caprichos
concordo,
e por vingança, te
engordo. p.98
Lua Cheia
Iara Vieira
Assim que as luzes
se apagaram
acendeu-se
a chama p.98
--
para curar um amor
platônico
só uma trepada
homérica p.99
Eduardo Kac
HOLLANDA, Heloisa
Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs.). Poesia jovem anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982.
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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